terça-feira, 19 de outubro de 2010

CONTINUAÇÃO DO ESTUDO DA CARTA DE PAULO AOS EFÉSIOS

CAPÍTULO 26

JÁ NÃO SOIS ESTRANGEIROS


"Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus." - Efésios 2:19


Conforme fomos percorrendo o nosso caminho através dos diver¬sos pormenores da argumentação do apóstolo iniciada no versículo 11, vimos que o apóstolo esteve dando ênfase a duas coisas. A primeira é a grandeza da mudança que necessariamente tem que ocorrer em nós, antes de sequer nos tornarmos cristãos. Não se conhece maior mudança em qualquer esfera ou departamento que aquela pela qual todos nós passamos quando nos tornamos cristãos. É uma nova criação, nada menos que isso. A segunda coisa que obviamente emerge é o privilégio da nossa posição como cristãos e como membros da Igreja Cristã, como membros do corpo de Cristo. As duas coisas estão aí, vocês notam, em todo o transcurso da argumentação. Os efésios eram aquilo, e se tornaram isto; e agora são um com os judeus, pois também eles se tornaram cristãos, e juntos são um só corpo, a Igreja, e servem a um só Pai.
Chegamos agora ao privilégio dessa posição. É a esse assunto que o apóstolo se dedica neste versículo dezenove e que ele desenvolve no restante deste capítulo. Ele deixa de pensar em termos de judeus ou gentios, ou de quaisquer diferenças; ele agora nos descreve o privilégio de alguém que é cristão, quer judeu quer gentio. A diferença não importa mais, tudo isso já terminou - um só novo homem! Aqui ele está focalizando este novo homem, esta nova humanidade, esta nova reali¬dade que veio a existir, a Igreja Cristã. Seu interesse é mostrar-nos quão maravilhosa ela é. Ele o faz empregando três figuras. A primeira é a figura de um Estado - os cristãos são cidadãos de um grande reino, de um grande Estado. A segunda é que eles são membros de uma família - "da família de Deus". E em terceiro lugar ele pensa nos cristãos e na Igreja Cristã como um templo no qual Deus habita.

O privilégio de ser cristão.

Esse é o tema aqui - o privilégio de ser cristão. Ele quer que estes efésios se dêem conta disso. É um retorno ao tema do versículo dezenove do capítulo primeiro e o seu contexto. O apóstolo disse a essas pessoas que ele estava orando por elas, pedindo que os olhos do seu entendimento fossem iluminados, para que elas soubessem "qual seja a esperança da sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos; e qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nos, o que cremos". É isso que ele quer que eles vejam - o privilégio de ser cristão. E é a isso que nos devemos apegar, mais do que a qualquer outra coisa. Todas as exortações desta Epístola, e de todas as outras, dirigidas aos cristãos, realmente são resultantes desta doutrina. Se apenas compreendêssemos exatamente o que somos e quem somos como cristãos, a maior parte dos problemas da nossa vida diária seria resolvida automaticamente. E porque não compreendemos isso, e o privilégio da nossa posição, que surgem os problemas. Se compreendêssemos, nunca invejaríamos os não cristãos, nunca procuraríamos viver tão perto deles quanto possível, nem nos lamentaríamos por não estarmos na posição deles. Tudo isso se deve à incompreensão do que somos. Assim, o apóstolo o diz dessa maneira maravilhosa. Vocês notaram que, antes de chegar a estas três figuras positivas, ele começa com uma negativa? O povo não gosta de negativas hoje em dia; mas o apóstolo gostava. "Assim que", ou "Portanto, agora" (V A); será que ele Vai dizer alguma coisa positiva? Não, ele vai começar com uma negativa. "Portanto, agora já não sois estrangeiros e forasteiros, mas ... " Depois ele passa à colocação positiva.
Obviamente, o apóstolo se sentira constrangido a introduzir a negativa outra vez. Noutras palavras, ele volta aos versículos onze e doze, onde dissera: "Portanto, lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis gentios na carne, e chamados incircuncisão pelos que na carne se chamam circuncisão feita pela mão dos homens; que naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranho aos concertos da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo”. Ele apenas olha de relance para isso de novo e daí começa com esta negativa: "Portanto, agora já não sois estrangeiros, nem forasteiros”. Por que vocês acham que ele faz isso? Parece-me obvio que a sua razão para fazê-lo deve ser que não será de nenhuma utilidade prosseguir e considerar os privilégios da nossa posição, se não estivermos completamente seguros de que estamos nessa posição. De nada vale que lhe digam exatamente o que se aplica a uma certa posição, se você não está nessa posição. Portanto, é essencial que deixemos bem claro para nós mesmos que tudo isso realmente se aplica a nós. Antes de começar a ver a minha cidadania, ou a minha relação como membro dessa família ou a mim mesmo como uma pedra desse edifício, desse templo, devo indagar a mim mesmo: estou ali? Isso tudo é aplicável a mim?
No caso dos efésios não havia dúvida ou questão alguma acerca desta matéria. Diz o apóstolo: portanto, agora vocês não são mais aquilo, são isto. Era óbvio, estava claro e patente para todos. Essas pessoas, quando pagãs, haviam tido certo tipo de vida. Por outro lado, os judeus tinham vivido um diferente tipo de vida e seguiam um padrão muito diferente de culto. Ninguém podia ser convertido do paganismo ao cristianismo e estar na fé cristã sem passar por uma mudança muito grande. Tinha que deixar certas práticas e costumes, tinha que renunciar a certos deuses aos quais servia antes, declará-los "não deuses", e muitas outras coisas. Era uma mudança óbvia. Paulo dizia: "Já não mais sois..., mas (sois)...”. Isso é algo que se aplica verdadeiramente aos chamados "cristãos da primeira geração". Aplicava-se ao caso da Igreja Primitiva. Também é aplicável ao contexto da obra missionária estran¬geira. As missões estrangeiras ocupam-se de lugares onde o evangelho nunca fora ouvido. O evangelho é pregado a pessoas que estavam no paganismo e nas trevas. É ouvido pela primeira vez, e as pessoas crêem, e a mudança delas é óbvia.
A primeira geração de cristãos! Mas não é tão simples quando se trata da segunda geração de cristãos; e é mais difícil ainda quando se trata da terceira, da quarta, da quinta - da décima - da vigésima geração. Assim é que, ao passo que a coisa estava perfeitamente clara no caso destes efésios, nem sempre está tão clara agora. Nunca é tão fácil e simples num país que se diz cristão, e onde muitos supõem tacitamente que todo aquele que nasce em tal país só tem que ser cristão. Não é tão fácil quando as pessoas foram criadas nas igrejas e numa atmosfera cristã, e sempre freqüentaram um local de culto e a Escola Dominical e participaram de atividades cristãs. Portanto, é muito importante que interpretemos isto não somente no cenário no qual foi originariamente escrito, e sim também em nosso próprio cenário particular; pois, como tentarei mostrar, o princípio é sempre exatamente o mesmo; a aplicação é que difere. Aqui o apóstolo estava primariamente preocupado com o princípio. Ele não estava simplesmente se regozijando no fato de que estes efésios eram membros de uma igreja como tais, e tinham os seus nomes num rol de igreja. Não é disso que ele está falando. Ele está falando sobre o princípio de vida. Ele estivera fazendo isso o tempo todo neste parágrafo altamente espiritual. Ele chega a nós, portanto, nesta forma particular de pergunta. Era óbvio que estas pessoas tinham sido Incrédulas e agora eram cristãs. A questão quanto a nós é: isso é tão definido, tão claro e inequívoco em nós como era nos efésios?
As duas palavras utilizadas pelo apóstolo nos ajudarão a encarar este assunto da máxima importância. A primeira, como vocês vêem, a palavra "estrangeiros" (V A: "estranhos"). "Portanto, agora já não sois estranhos." Que é um estranho? Estranhos são os que se acham entre um povo que não é o deles. Quando você é um estranho, você está no meio de um povo que não lhe pertence. Todos pertencem uns aos outros, mas você é um estranho, não lhes pertence, eles não são o seu povo. A segunda palavra é a que é traduzida por "forasteiros" (V A: "estrangeiros"). Às vezes vocês a verão traduzidas por "residentes temporários", ou "forasteiros" (ARC). Ambas as expressões são muito boas. Que é que significa essa palavra? Originariamente era a descrição de alguém que morava perto de uma comunidade, porém não nela; por exemplo, um homem que vive perto do muro da cidade, do lado de fora. Ele está perto da cidade, mas não está nela. Ele não pertence à cidade; mora perto, todavia não nela. Esse era o sentido original, mas agora passou a ter o sentido de pessoas que se acham num lugar que não e o seu país. O primeiro termo, "estranhos", dá mais a idéia de uma unidade familial, de uma espécie de relação de sangue, ao passo que esta outra, "estrangeiros" ou "forasteiros", compele-nos inevitavelmente a pen¬sar mais em termos de uma comunidade política, um Estado, ou um país, ou um reino. Estrangeiro é quem está num lugar que não é o seu próprio país. Quer dizer que, embora este homem esteja vivendo no país, não possui a cidadania desse país, não se naturalizou, não tem direito a residência permanente nesse país. Ou, para dizê-lo de modo ainda mais simples, reside ali baseado num passaporte. Pois bem, são estas as duas palavras empregadas pelo apóstolo Paulo: estranhos e estrangeiros (V A) ou forasteiros, pessoas que vivem ali, talvez há bastante tempo, mas continuam sendo estrangeiras. Outro lugar é o seu lar; aqui esses estrangeiros residem graças a um passaporte, e têm que renová-lo periodicamente. É essa, então, a figura que o apóstolo coloca diante das nossas mentes. E vocês podem observar que quando ele chega à argumentação positiva, ele inverte a ordem: começa com a cidadania e depois passa ao relacionamento familiar. No entanto, neste momento estamos interessados primordialmente na negativa.
Notem como esta questão é sutil. Vemos isso muitas vezes na prática. Alguém pode estar vivendo na família há anos, é quase da família e, contudo, não é da família. Embora esta pessoa esteja compartindo a vida da família de todas as formas que possamos conceber, ele ou ela ainda não pertence à família. E é aí que entra a dificuldade. Um estranho, um visitante, poderia muito bem pensar e dizer: obviamente, esta pessoa é da família. E, todavia, depois de conhecer os moradores passando breve tempo, descobriria não ser este o caso. É exatamente a mesma coisa com um país. Pode haver pessoas vivendo num país, residentes há muitos anos, e alguém, em visita ao país, vendo-as poderia ter como certo que qualquer delas é de fato daquele país, é simplesmente um cidadão típico - que faz o mesmo tipo de coisas que os outros cidadãos fazem, vão ao trabalho de manhã, voltam à noite no mesmo trem, seguem exatamente a mesma rotina. E, na verdade, aquela pessoa não pertence a esse país, não é um cidadão local, mas vive ali mediante um passaporte.
Aí vemos, numa figura, a idéia que precisamos ter bem presente em nossas mentes. Esse tipo de coisa acontece na Igreja de Deus; esta mesma situação, de viver com uma família e não pertencer a ela, estar num país e não ser seu cidadão. É possível estar num grupo e não ser do grupo. Certamente vocês se lembrarão de que quando os filhos de Israel subiram do Egito e foram para Canaã, é-nos dito, numa frase deveras extraordinária, que "subiu também com eles uma mistura de gente" (ou, "uma multidão mista", VA, Êxodo 12:38). Foram com eles, partilharam os mesmos riscos, os mesmos problemas e dificuldades que os filhos de Israel enfrentaram, porém não pertenciam a eles. Eram uma "multidão mista". Mas de fato o apóstolo leva mais longe o ponto, na Epístola aos Romanos, quando diz: "Nem todos os que são de Israel são israelitas" (Romanos 9:6). Que frase! Você olha para aquele monte de gente, e diz: são todos de Israel. Todavia não é essa, necessariamente, a conclusão certa. Há Israel e "Israel". Há um "Israel" do espírito, como também há um Israel da carne. Há um remanescente no povo. Esse é o ensino do apóstolo, e nestas Epístolas do Novo Testamento, é uma doutrina vital e sumamente importante. Você pode ser de um grupo e, contudo, não pertencer realmente a ele. O apóstolo João diz a mesma coisa acerca de certas pessoas que tinham saído da Igreja Cristã Primitiva. "Saíram de nós", diz João, "mas não eram de nós; porque, se fossem de nós, ficariam conosco" (l João 2: 19). Tinham estado entre eles, mas não eram deles. Tinham estado na Igreja e pareciam cristãos, porém nunca pertenceram realmente à Igreja.

A diferença entre o cristão e o não cristão é clara e definitiva

Essa é a espécie de questão que se nos apresenta aqui. Consideremo¬-Ia na forma de alguns princípios. O primeiro é que a diferença entre o cristão e o não cristão é clara e definitiva. A despeito de tudo o que eu estive dizendo, permanece o princípio segundo o qual há uma clara distinção entre um cristão e um não cristão. Paulo diz algo semelhante 11 isso, para expressá-lo: "Vocês - não são mais". Há uma mudança, uma mudança de alto a baixo. Que houve uma mudança exterior evidente, mas ele não está interessado na mudança exterior, e sim, na interior. E portanto, não há nenhuma necessidade de hesitar em afirmar que cada um de nós, neste momento, ou é cristão, ou não é. Ou estamos "em Cristo", ou estamos "fora de Cristo". Aristóteles uma vez lançou como proposição, sem dúvida verdadeira, que "Não há meio entre os opos¬tos". Os opostos são opostos, e não há nada no meio, não há nenhum meio entre eles. É "ou - ou." No capítulo sete do Evangelho Segundo Mateus, o nosso bendito Senhor e Salvador dá ênfase exatamente a este ponto. Você não pode estar ao mesmo tempo no caminho estreito e no caminho largo. Você não pode entrar por duas portas no mesmo instante. Você não pode passar ao mesmo tempo por uma borboleta ou catraca, e por uma porta larga. É impossível. Pois bem, é aí que começa a diferença entre o cristão e o não cristão. O cristão entra por uma porta estreita e segue um caminho estreito. O outro faz exatamente o contrário. Temos que ser uma coisa ou outra. Essa é a afirmação do nosso Senhor. Vocês podem notar como Ele vai repetindo isso - o profeta verdadeiro, e o falso; a boa árvore, e a ruim; o bom fruto, e o mau; e, finalmente, nessa tremenda descrição da casa sobre a rocha e da casa sobre a areia. É sempre uma coisa ou outra, é ou - ou. Ou vocês são cristãos ou não são cristãos. E estas coisas são absolutas. Vocês não são mais estranhos e estrangei¬ros; vocês são cristãos, estão no corpo.
A posição do cristão não é uma posição vaga, indefinida, incerta. É verdade que se vocês pensarem nela principalmente em termos de conduta e de comportamento superficiais, então ela pode muito bem ser vaga. Posso traçar facilmente um quadro descritivo e mostrar a vocês dois homens. Um deles é notável por sua elevada moralidade, nunca faz mal a ninguém, sua palavra é sua promissória, é honesto, justo ereto, um homem completamente bom, em todos os sentidos da palavra. Entre¬tanto, vejam agora o outro homem. Olhando os dois de maneira geral, vocês não podem dizer que o segundo é bom como o primeiro. Às vezes faz coisas que não devia fazer, ele não tem, talvez, um caráter louvável. E, todavia, pode dar-se o caso deste segundo homem ser cristão e o outro não. Pois o que determina se um homem é cristão ou não, não é a sua aparência geral e o seu comportamento. Aquele estrangeiro que vive em nosso país se parece exatamente com um inglês, faz as mesmas coisas, etc.; não obstante o fato é que ele continua sendo estrangeiro. O fato de que ele se parece com o outro homem não significa que é como ele. A questão é: sua residência se apóia num passaporte ou em sua cidadania? Vocês vêem, a prova não é esta aparência geral, superficial. É exatamente isto que o Novo Testamento está sempre salientando. Este é um ponto realmente fundamental. Concordaríamos que, ou somos definidamente cristãos, ou senão, não somos cristãos? Concordaríamos que não existe isso de haver uma posição intermediária em que o indivíduo espera ou tenta ser cristão? Se você está simplesmente esperando ou tentando ser cristão, você não é. Estar na soleira da porta não é estar dentro, e não ajuda nada estar na soleira quando a questão é: você está dentro ou não? Quantas vezes isso é descrito nas Escrituras! O nosso Senhor traça o quadro das pessoas que vêm bater à porta e dizem: "Abre para nós"; mas a resposta que vem de dentro é: não, vocês estão fora, não são daqui. Ou somos cristãos, ou não somos cristãos.

A importância vital de sabermos o que somos.

Assim, o segundo ponto que apresento, o meu segundo princípio, consiste em acentuar a importância vital de sabermos o que somos. Ora, aqui, de novo, a ilustração de Paulo nos ajuda. Pergunto: como se toma claro e óbvio se somos estranhos e estrangeiros (forasteiros), ou se realmente somos do lugar? Sempre acaba ficando claro. Não importa quão íntima seja a relação, e quão amigo você seja de alguém que esteja vivendo com você na família. Temos um dito que resume tudo muito bem - "Afinal de contas, o sangue é mais grosso do que a água." Certas coisas aparecem na vida quando o que de fato importa é a relação de sangue. E é nesse ponto que o pobre estranho começa a sentir que não passa de um estranho, afinal. Durante anos ele pode achar que as distinções eram irrelevantes, e pode ter dito: eu sou um deles, sou membro da família e sempre fui tratado como membro da família. Mas, de repente, numa crise, ele descobre que não é. "O sangue é mais grosso do que a água." Não se pode explicar estas coisas; vocês até podem dizer que há muita coisa errada numa situação como essa. Pode ser, porém é como funciona na prática. Se alguma coisa fundamental, elementar, subitamente vier à superfície, logo você verá toda uma família que talvez estivesse em confusão, repentinamente tomar-se unânime. E o pobre estranho percebe que é um de fora.
Ou vejam a outra ilustração que talvez coloque isso de maneira mais clara ainda. Tomem o caso de uma pessoa que se acha noutra terra como forasteiro, como estrangeiro. Pode ter vivido ali vinte, trinta, quarenta anos, gosta de viver ali, é estimado por todos e se sente feliz. Todas as distinções parecem irrelevantes. Que importa se o que ele tem é um passaporte, e não uma verdadeira cidadania, e tem que providenciar renovação e visto e tudo o mais? Mas, esperem! Subita e inesperada¬mente, o país natal deste homem e o no qual ele está vivendo, têm um litígio; não resolvem o litígio, e é declarada guerra. E este homem, que pode estar vivendo há quarenta anos no país, de repente vê que é um estrangeiro, e que todos o olham com suspeita. Poderá ser posto em reclusão ou ser enviado de volta ao seu país. Parecia ser um membro da comunidade, um cidadão do país, unido aos verdadeiros cidadãos; porém quando surge uma crise, uma prova, uma tribulação, logo fica claro que, afinal, ele é um estrangeiro. Vimos muito desse tipo de coisa neste país em 1914 e em 1939. Às vezes chega a ser trágico, contudo acontece.
Retornemos, então, ao princípio que achamos percorrendo as Escrituras, de capa a capa. Por que é importante saber se você é cristão ou não? Vou dizer-lhe. É na hora da prova que isso se torna de vital importância para você. É nas provas e tribulações que isso vem à luz. Você vai vivendo anos e anos enquanto você está bem, robusto e saudável. Você está na igreja, você parece que é da igreja, os seus interesses estão lá e você é um dos que pertencem à comunidade. Mas, de repente, você adoece e fica meses de cama. Não demorará muito para você saber se é cristão ou não. Isso faz uma vital diferença então. Ou quando um membro da família fica enfermo, quando há privação ou luto, ou alguma terrível tristeza de arrebentar o coração. Ah, é então que isto se torna da maior importância. Se você só "reside baseado no passa¬porte", isso não parece ajudá-lo. No entanto, se você realmente pertence à comunidade, isso fará toda a diferença do mundo. Mas, levemos isto à última instância. Esta nos é dada pelo Senhor mesmo. Não seria disso que trata a parte conclusiva do capítulo sete de Mateus? Estas pessoas que parecem cristãs e que dizem: "Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome... e em teu nome não fizemos muitas maravilhas?" ¬estavam na igreja, eram ativas na igreja, eram gente de igreja. Todavia Cristo diz: "E então lhes direi abertamente: nunca vos conheci; apartai¬-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade". Um estranho, afinal, um estrangeiro, em última análise; passaporte devolvido, navio ao largo, expulso do país! Ah, a vital importância de certificar-nos absolutamente do que somos, se continuamos sendo "estranhos e estrangeiros", ou se realmente somos daqui.

Como podemos saber disso? Como podemos resolver esta questão? Quais são as provas?

Para ser prático, deixem-me colocar o meu terceiro princípio em termos de perguntas. Como podemos saber disso? Como podemos resolver esta questão? Quais são as provas? Vou sugerir algumas respostas bem simples, baseadas na ilustração utilizada pelo apóstolo.
Começo com a mais superficial delas. É a seguinte: um sentimento geral. Não vou testar vocês, vocês vão testar a si próprios. Amigo, você quer saber se você é ou não um estranho e forasteiro? Bem, responda estas perguntas: você se sente realmente bem na igreja? Você se sente à vontade entre os cristãos? Você se sente em casa? Ou você tem a incômoda sensação de que, de algum modo, é de fora? É o que acontece quando você vai hospedar-se numa casa de família, não é? Os hospedei¬ros são excelentes e mostram amizade, mas você sente que não é dali, não se sente muito à vontade, está cônscio de que não está em seu próprio lar, não consegue descontrair-se. Você é um estranho, afinal de contas, embora todos lhe sejam bondosos, afáveis e amigos. Você se sente em casa entre o povo de Deus? Você fica à vontade? Ou, apesar de tudo, não passa de um estranho, um de fora, um intruso que realmente não se enquadra? Ou, permitam-me colocá-lo assim: você se sente bem, tão bem entre os cristãos como noutros círculos sociais e com outros tipos de companhia - e com as risadas e pilhérias, as brincadeiras, e tal vez as bebidas e o jogo, você tem liberdade com eles e tem muito que dizer? Você é um deles? E assim? Você se sente um pouco fora do seu elemento na igreja? Isto é tremendamente importante. Quando você o coloca em termos de família, você vê como isso é inevitável. É um desses imponderáveis, como lhes chamamos, algo que dificilmente você poderá escrever, isto é, pôr no papel, mas você simplesmente sabe o que é. É assim que eu me sinto, você diz; e o seu sentimento está certo.
Ou vejam outra abordagem. Haveria um real e vivo interesse? Quando você pertence a um grupo, trabalha ativamente pelo seu interesse, você tem vivo interesse. Mais que isso, você realmente se deleita nisso, seu coração está posto nisso, é o que você ama, é onde você gosta de estar. Você gosta de estar em casa, você gosta de estar em seu país; você pode admirar outros, porém, afinal de contas, este é o seu lar. Ora, a mesma coisa aplica-se a este relacionamento. O homem que verdadeiramente lhe pertence se delicia nisso. Não é questão de esforço para ele. Não é mera questão de dever. É uma coisa na qual ele tem satisfação própria e que ele preza acima de tudo mais. Permitam-me resumir toda esta seção colocando-a nas palavras da Primeira Epístola de João: "Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos" (3:14). Sentimos que pertencemos a eles. Haverá alguns deles dos quais não gostamos, talvez, mas nós os amamos, porque são irmãos. Podem gostar mais doutras pessoas do que deles, todavia não é questão de gostar, é questão de amar. Às vezes acontece que um membro de uma família gosta mais de um amigo do que de um irmão ou irmã; isso não afeta o relacionamento, este é algo elementar, fundamental, orgânico, e mais profundo que qualquer outra coisa. "Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos." Sentimento geral!
Passemos a uma segunda prova. Entendimento! Quando você está convivendo com uma família, esta questão de entendimento torna-se tremendamente importante; e dá-se o mesmo quando você é estrangeiro noutro país. Eis o que quero dizer: você sabe e entende o que se está falando? Haveria algo que faça você se sentir mais molestado do que, embora estando assentado com um grupo, sentir-se, de um modo ou de outro, fora da conversa e não conseguir penetrar no que está sendo dito? Todos parecem entender-se, usam certas frases, olham-se uns aos outros como se entendendo, estão todos dentro do assunto, é uma espécie de maçonaria, por assim dizer; mas você, de algum modo, não está nisso. Você ouve, faz parte do grupo, está na conversação, entretanto não é capaz de penetrar no que se diz e não sente prazer nisso. Por isso, faço¬-lhe perguntas como estas: você entende a linguagem do povo de Deus? A família tem o seu linguajar próprio. Há os que dizem: não posso entender esta prosa sobre justificação, santificação, e todos estes termos - você se sente assim? Não o permita Deus! Eles são termos preciosos para os filhos de Deus. Estes não se impacientam com eles. São como a criança que ouve os adultos. De repente ela aparece com uma palavra grande, que ela não entende. Que é que a criança está fazendo? Está tentando provar que é membro do grupo. Está usando uma palavra que o pai usou. E os filhos de Deus são desse jeito. Eles podem não saber o que significam justificação e santificação, mas, porque são filhos, querem saber, e se põem a ler, a estudar e fazer perguntas. No entanto, se você fica impaciente com isso tudo, você está simplesmente procla¬mando que é um de fora e que não entende a linguagem. Porventura a linguagem de Sião é agradável a você? Imagine-se o caso de um homem que foi para outra terra e teve que falar uma língua estrangeira; ele toma o navio de volta e, mesmo antes de desembarcar, ouve de novo a sua língua materna e, maravilha, como se regozija! É assim com o cristão.
Mas não é só questão de linguagem, há algo mais. Você sabe algo dos assuntos que estão discutindo? Você os entende, tem interesse nas questões? Outra vez, permitam-me usar uma ilustração. Todos nós já tivemos este tipo de experiência. Estamos hospedados numa casa de família, talvez. São todos excelentes, bondosos e afáveis, e nos pomos a conversar. Então, de repente, alguém entra e, observando o seu semblante, você pode dizer que aconteceu algo de grande interesse para a família. Eles ficam sem graça, querem falar sobre o assunto, porém você está ali, e eles não podem fazê-lo. Por isso falam por meio de insinuações, alusões indiretas e rodeios. Você não sabe do que estão falando. Eles se portam desse modo porque você é um estranho - eles gostam de você, não o estão insultando, mas você não os entende. Há estes problemas e questões íntimos que eles não podem compartilhar com você, embora gostem muito de você, porque você não pertence à família. Dá-se o mesmo com um país. E também é assim na vida cristã. As questões, os assuntos e os problemas da vida cristã são do seu conhecimento? Você se interessa por eles? Ou quando você se assenta e ouve pessoas falando sobre eles, ou talvez quando você ouve alguém que está tentando pregar, você diz a si mesmo: de que se trata? Não entendo. Se ele estivesse falando sobre a visita de algum estadista estrangeiro, ou sobre alguma nova medida apresentada no parlamento, claro que eu, entenderia; todavia estas outras coisas - deque se tratam? Que é isso? E tão aborrecível! E desse tipo a maneira pela qual você pode verificar se é da família ou não.

Você conhece os segredos?

Finalmente, permitam-me dizê-lo de um modo que, suponho, é uma das provas mais definitivas. Você conhece os segredos? Há segredos familiares, há segredos nacionais. Você está por dentro dos segredos? E possível que um homem tenha interesse por religião, por teologia, por filosofia; e enquanto você está tratando de questões abstratas e teóricas, ele parece estar integrado, parece um da família. Mas, subitamente você começa a falar espiritualmente - quer dizer, você começa a falar experimentalmente, você começa a falar sobre a sua alma e sobre a sua experiência pessoal - e imediatamente o homem que se mostrava tão interessado teoricamente, sente-se fora. Você sabe algo sobre isso? Outro dia ouvi falar de um homem que estava num certo seminário teológico. Ele foi para lá porque soube que lá ensinavam as grandes doutrinas da fé, e ele estava apreciando aquilo, para alegria do seu coração. Contudo, de repente se defrontou com um problema e quis falar com alguém sobre a sua alma, e quis falar a fundo sobre algum segredo. Mas não conseguiu achar ajuda. Pareciam não entender, não queriam falar sobre tais questões. Enquanto era uma questão de argu¬mentar sobre filosofia - maravilha! Interessados em teologia? - sim, certamente! Todavia quando o homem teve uma necessidade relacio¬nada com a sua alma e queria algo experimental, de repente começou a sentir que estava vivendo num iceberg. Totalmente ortodoxos - mas frios. E possível ter um interesse geral, sem este interesse íntimo e pessoal pelos segredos da vida. Essa é uma prova vital!
Eis outras provas que sugiro: você está se amoldando às leis e aos costumes do país? Diz o apóstolo João que, para o cristão, os manda¬mentos de Deus "não são pesados" (1 João 5 :3). São pesados para todos os outros, porém não para o cristão. O cristão diz: "Quanto amo a tua lei!" Davi pôde dizê-lo no Salmo (119:97), e o cristão o diz. Proclama¬mos onde estamos e o que somos pelo modo de viver. Você vai deste país à França, digamos, ou a alguma outra parte do continente europeu, em seu carro, e se põe a dirigir na faixa da esquerda na estrada, e em dois segundos se verá que você é um estrangeiro. Exatamente! E não há muitos que estão dirigindo na faixa errada da estrada na igreja? Eles não sabem talvez, mas estão proclamando que são estrangeiros e estranhos, estão dirigindo no lado errado da estrada. Não conhecem e não honram as leis e os mandamentos do reino. Não se comportam de maneira condizente e coerente com os costumes e hábitos desta família ou deste país particular. Estranhos e estrangeiros, embora vivendo com o grupo! Outra prova vital é o interesse pelo estado e condição da família ou do país, pelo seu bem-estar. Isto surge instintivamente.

Eis a prova final: que é que você tem, um passaporte ou uma certidão de nascimento?

Finalmente se chega a isto: comecei num nível superficial e fui me aprofundando. Eis a prova final: que é que você tem, um passaporte ou uma certidão de nascimento? E uma prova absoluta, não é? Está acima do sentimento, do interesse, do entendimento e de todas estas coisas. Em última análise, é uma questão legal. Você tem certidão de nasci¬mento, ou está simplesmente residindo com base num passaporte? Vocês perguntarão: qual é a certidão de nascimento do cristão? Eu lhes direi. Está acima e além de tudo quanto estive dizendo. "O mesmo Espírito testifica com o nosso Espírito que somos filhos de Deus" (Romanos 8: 16). Trata-se de receber o selo do Espírito (Efésios 1: 13). É a segurança que só pode ser dada pelo próprio Espírito Santo, que nos selou e que é "o penhor da nossa herança, para redenção da possessão adquirida" (Efésios 1:14). Não me entendam mal. Você pode ser cristão, embora não tenha um definido conhecimento do selo do Espírito. Se você passou nas minhas outras provas, asseguro-lhe que você é cristão. Mas eu o exorto, eu o concito, não se contente com isso. Insista em que tenha a sua certidão! Vá à Embaixada do Reino Celestial, até consegui-la! Não deixe que nada o detenha. Procure obtê-la das mãos do Senhor! Dirija-se a Ele. Torno a usar a expressão de Thomas Goodwin* - "corteje-O" para obtê-la até consegui-la. E depois você saberá e poderá dizer: não sou mais estranho ou estrangeiro, sou concidadão dos santos, sou da família de Deus; sou uma pedra viva no templo em que Deus habita.

* Teólogo puritano inglês (1600-1680). Do período mais recente dos puritanos. O termo que emprega, traduzido aqui por "corteje-O" é sue. Nota do tradutor.

Por: D. M. Lloyd Jones

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