Por: D.M. Lloyd Jones
PELA GRAÇA POR MEIO DA FÉ
"Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas".
- Efésios 2:8-10
I) Ninguém pode viver esta vida cristã se primeiro não tiver um verdadeiro entendimento do que é que afinal nos faz cristãos
Nestes três versículos o apóstolo resume a grande argumentação que ele nos transmite nos sete primeiros versículos deste capítulo. Ele a traz toda a um centro focal. Imagino que, em certos aspectos, podemos dizer que em parte alguma desta Epístola se vê declaração mais importante que esta. Naturalmente, tudo vem prenhe de doutrina, como temos visto; mas, certamente, do nosso ponto de vista, e para que se tenha verdadeiro e claro entendimento do que é que nos faz cristãos, não há nada que seja mais importante do que essa declaração particular. E, portanto, é óbvio que é igualmente importante no sentido prático.
Aqui está, seguramente, uma declaração que precisa ser aceita como determinante em toda obra de evangelização. De igual modo, ela deve determinar toda a nossa prática da vida cristã, porque a crença e a prática são inseparáveis. Não se pode separar terminantemente o conceito que a pessoa tem destas coisas, do seu relacionamento integral com elas. Por isso digo que nesta passagem estamos face a face com uma das declarações mais cruciais de todas as Escrituras, e obviamente é por isso que o apóstolo a expõe desta forma especial. Por essa mesma razão também, ele já tinha orado, no capítulo primeiro, para que os olhos do nosso entendimento fossem iluminados. Jamais poderemos repetir isso em demasia. Esta grande Epístola, talvez a maior de todas em alguns sentidos, impregnada de profunda teologia e de afirmações doutrinárias, foi, não obstante, escrita primordialmente com o objetivo de ajudar as pessoas de maneira prática e pastoral. Noutras palavras, não devemos pensar que ela é, primeiramente e acima de tudo, uma tentativa da parte do apóstolo, de escrever um tratado teológico. O apóstolo não era um teólogo profissional – pergunto se deveria existir tal coisa. O apóstolo era pregador e evangelista. Tal homem, é evidente, tem que ser teólogo – se não o for, não poderá ser um verdadeiro evangelista – no entanto não se tratava de uma questão profissional. A abordagem do apóstolo não é acadêmica, não é teórica; ele estava interessado em ajudar aqueles crentes a viverem a vida cristã. Foi por isso que lhes escreveu. Mas ele sabia que ninguém pode viver esta vida cristã se primeiro não tiver um verdadeiro entendimento do que é que afinal nos faz cristãos. Portanto, quando Paulo lhes escreve, ele parte desta grande doutrina, e depois passa à sua aplicação.
É o que ele faz aqui, em sua oração por eles, no sentido de que os olhos do seu entendimento sejam iluminados, para que eles possam conhecer a esperança da vocação de Deus, as riquezas da glória da Sua herança nos santos e, talvez mais importante que tudo mais, a imensurável grandeza do Seu poder para conosco, os que cremos. Essa era a dificuldade daqueles crentes; não se davam conta desse poder. E é esta a nossa dificuldade – a nossa incapacidade de perceber a imensurável grandeza do poder de Deus em nós, os que cremos. Assim ele procurou revelá-la, expô-la e colocá-la claramente diante deles. Ele a tinha exposto em detalhe: a descrição negativa nos versículos 1 a 3; a positiva nos versículos 4 a 7. Feito isso ele diz: agora, então, tudo vem a dar nisto... Vocês podem notar que ele começa com a palavra "Porque". "Porque pela graça sois salvos." É uma continuação; ele retrocede ao que estivera dizendo, e depois o coloca mais uma vez de um modo que não nos deixará esquecê-lo nunca mais.
É uma descrição do que significa realmente ser cristão. Cada vez me convenço mais de que a maior parte dos nossos problemas na vida cristã surge nesse ponto. Pois, se não estivermos certos no começo, estaremos errados em toda parte. E, visto que muitos ainda estão confusos nesse primeiro passo, estão sempre cheios de problemas, dificuldades e perguntas, e não podem entender isto, e não conseguem ver aquilo. É porque nunca entenderam bem o alicerce.
Bem, aí está para nós – e, como eu disse, não há declaração mais clara sobre isso em parte alguma das Escrituras.
Então, por que a confusão? Muitas vezes a confusão aparece porque as pessoas transformam estas grandes declarações do apóstolo em matéria de controvérsia. E o fazem porque insistem em introduzir a sua filosofia, com o que me refiro às suas ideias pessoais. Em vez de tomarem as claras afirmações do apóstolo, elas dizem: mas eu não consigo ver isto. Se é assim, então não entendo como Deus pode ser um Deus de amor. Noutras palavras, essas pessoas começam a filosofar e, naturalmente, no momento em que vocês começarem a fazer isso, estarão fadados a ter dificuldades. Ou aceitamos as Escrituras como nosso único fundamento, ou não. Muitos dizem que as aceitam, mas logo vêm com a sua incapacidade de entender. No momento em que vocês fizerem isso, terão abandonado as Escrituras e estarão introduzindo a sua capacidade pessoal, o seu entendimento, e as suas teorias e ideias pessoais. Esse tem sido constantemente o problema, especialmente com estes três versículos que estamos considerando. O que me proponho a fazer, portanto, é simplesmente colocar estas afirmações diante de vocês, e pedir-lhes que as considerem e que meditem sobre elas. Aqui está o fundamento completo da nossa posição como cristãos. É aqui que se nos diz com exatidão como foi que nos tornamos cristãos.
II) Somos cristãos inteiramente como resultado da graça de Deus
Que é que o apóstolo diz? Diz ele que somos cristãos inteiramente como resultado da graça de Deus. Ora, certamente ninguém pode contestar isso. "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus." Notem o método do apóstolo aqui. A declaração toda está em três versículos e, em certo sentido, podemos tomar os três versículos como nossas divisões e subtítulos. Primeiro ele faz uma declaração positiva no versículo 8. Coloca a seguir uma negativa, no versículo 9; e o propósito da negativa é reforçar a positiva. Está apenas dizendo a mesma coisa negativamente. E depois, no versículo 10, ele parece combinar as duas, a positiva e a negativa.
1) Examinemos primeiro a declaração positiva:
Sua asserção feita positivamente é que nós somos cristãos inteira e unicamente como resultado da graça de Deus. Lembremo-nos mais uma vez de que "graça" significa favor imerecido. É uma ação que brota inteiramente do caráter misericordioso de Deus. Assim, a proposição fundamental é que a salvação é algo inteiramente procedente da parte de Deus. O que é mais importante ainda é que ela não somente vem da parte de Deus, porém nos vem apesar de nós mesmos – favor "imerecido". Noutras palavras, não é a resposta de Deus a alguma coisa que haja em nós. Há muitos, no entanto, que parecem pensar que é – que a salvação é a resposta de Deus a algo existente em nós. Mas a palavra "graça" exclui isso. É apesar de nós. Como vimos, o apóstolo mostra-se muito ansioso para dizer isso. Observem o modo interessante como ele, por assim dizer, introduziu-o sutilmente no versículo cinco. Ele se interrompeu, que¬brou a simetria da sua exposição, e se fez culpado de grave defeito, do ponto de vista do estilo literário. Contudo, ele não estava preocupado com isso. Ouçam-no: "Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo", e então, em vez de dar o passo seguinte – parênteses "(pela graça sois salvos)". Aqui ele o expressa um pouco mais explicitamente. A salvação não é, em nenhum sentido, a resposta de Deus a algo existente em nós. Não é algo de que nalgum sentido tenhamos merecimento ou mérito. Toda a essência do ensino neste ponto, e em toda parte do Novo Testamento, é que não temos nenhum tipo ou nenhuma espécie de direito à salvação, e que toda a glória da salvação é que, apesar de nada merecermos, senão a punição, o inferno e o banimento da presença de Deus por toda a eternidade, não obstante Deus, por Seu amor, Sua graça e Sua maravilhosa misericórdia, concedeu-nos esta salvação. Pois bem, esse é todo o ensino do termo "graça".
Não precisamos demorar-nos aqui, porque já estivemos tratando disso nos sete versículos anteriores. Qual é o objetivo desses versículos? Não será apenas mostrar-nos essa mesma verdade negativa e positiva¬mente? Qual é o objetivo dessa horrível descrição do homem como ele é por natureza em consequência do pecado nos três primeiros versículos, senão justamente mostrar que o homem, como ele é, não merece nada, exceto a retribuição aos seus pecados? Ele é por natureza filho da ira, e não somente por natureza, mas também por conduta, por seu compor¬tamento, por sua atitude em geral para com Deus – vivendo segundo o curso deste mundo, governado pelo príncipe das potestades do ar. Esse é o tipo de criatura que ele é; morto em ofensas e pecados, criatura cheia de cobiças, cobiças da carne, "fazendo a vontade da carne e dos pensamentos". Não existe descrição mais horrorosa do que essa. Não se pode imaginar um estado pior do que esse. Uma criatura como essa merece alguma coisa? Tem algum direito diante de Deus? Poderá ir à frente com alguma causa ou demanda para defender? Todo o ponto visado pelo apóstolo é que tal criatura não merece nada das mãos de Deus, senão a retribuição aos seus pecados. E depois ele desenvolve o seu argumento com o seu grande contraste – "mas Deus" – que já consideramos em detalhe. E o propósito disso, seguramente, é exaltar a graça e a misericórdia de Deus, e mostrar que, onde o homem não merece absolutamente nada, Deus não somente lhe dá, e lhe dá liberalmente, mas faz chover sobre ele "as imensuráveis riquezas da sua graça".
Esse é, pois, o primeiro princípio: que somos cristãos única, total e exclusivamente por causa da graça de Deus. Referi-me ao versículo cinco porque é extremamente importante nesta argumentação. Notem como o apóstolo o inseriu ali, fê-lo escorregar para dentro, por assim dizer, insinuou-o. Por quê? Observem o contexto. Diz ele que foi exatamente "quando estávamos mortos em pecados" que Deus nos vivificou. E então, imediatamente – "(pela graça sois salvos)". Se você não enxergar o princípio nesse ponto, não o enxergará em lugar nenhum. O que ele estava dizendo é que estávamos mortos, isto é, absolutamente sem vida; portanto, sem nenhuma capacidade. E a primeira coisa que nos era necessária, era que nos fosse dada vida, que fôssemos vivificados. E diz ele que foi exatamente isso que Deus fez conosco. Pelo que diz ele: vocês não conseguem ver isso? É pela graça que vocês são salvos. Portanto, ele o coloca nesse ponto em particular obviamente por essa razão. É a única conclusão que se pode deduzir. Criaturas que estavam espiritualmente mortas, agora estão vivas – como aconteceu? Pode um morto voltar a viver por si mesmo? Impossível. Há uma única resposta: "Pela graça sois salvos". Chegamos, pois, a esta inevitável conclusão: somos cristãos neste momento única e inteiramente pela graça de Deus.
O apóstolo nunca se cansava de dizer isso. Que mais poderia ele dizer? Quando ele olhava para trás, para o blasfemo Saulo de Tarso, que odiava a Cristo e a Igreja Cristã e fazia o máximo que podia para exterminar o cristianismo, respirando ameaças e morte; quando olhava para trás e via isso, e depois olhava para si mesmo como ele agora era, que poderia ele dizer, senão isto: "Sou o que sou pela graça de Deus"? E devo confessar que ultrapassa a minha capacidade de entender como algum cristão ou alguma cristã, ao olhar para si, possa dizer coisa diferente. Se quando você dobra os joelhos diante de Deus não se der conta de que é "devedor à misericórdia, única e exclusivamente", confesso que não entendo você. Há alguma coisa tragicamente defeitu¬osa, ou no seu sentimento de pecado, ou na sua capacidade de percepção da grandeza do amor de Deus. Este é o tema sempre presente no Novo Testamento, a razão pela qual os santos dos séculos sempre louvaram o Senhor Jesus Cristo. Eles veem que quando estavam em total desesperança, verdadeiramente mortos, e eram vis e repugnantes, "odiosos, odiando-nos uns aos outros", como diz Paulo escrevendo a Tito (3:3). Deus olhou para eles. Foi "quando éramos ainda pecadores", mais, foi "quando éramos inimigos" que fomos reconciliados com Deus pela morte do Seu Filho – inimigos; alienados em nossas mentes, completamente opostos. Não seria certo que temos que ver que é pela graça, e somente pela graça, que somos cristãos? É totalmente imere¬cido, é somente como resultado da bondade de Deus.
2) A segunda declaração, uma proposição colocada em forma negativa
A segunda proposição, como indiquei, é colocada em forma nega¬tiva pelo apóstolo. Diz ele que o fato de que somos cristãos não nos dá base nenhuma para jactância. Essa é a forma negativa da primeira proposição. A primeira é que somos cristãos única e inteiramente como resultado da graça de Deus. Portanto, em segundo lugar, temos que dizer que o fato de sermos cristãos não nos dá nenhuma base para gabar-nos. O apóstolo faz a colocação disso com duas declarações. A primeira é: "Isto não vem de vós"; não satisfeito com isso, o apóstolo se expressa mais explicitamente com estas palavras: "para que ninguém se glorie". Aí temos duas declarações vitalmente importantes. Certamente nada poderia ser mais forte: "Não vem de vós"; "para que ninguém se glorie". Este sempre deve ser o teste decisivo do nosso conceito da salvação e do que nos faz cristãos. Examinemo-nos por um momento. Qual a ideia que você faz de si mesmo como cristão? Como foi que você se tornou cristão? De que depende? Que é que está no fundo? Qual a razão? Essa é a questão decisiva e, segundo o apóstolo, o teste vital. A sua ideia de como você se tornou cristão lhe dá alguma base para orgulhar-se de si mesmo, para gabar-se? Essa sua ideia reflete de alguma forma algum mérito a seu favor? Se reflete, segundo esta declaração apostólica não hesito em dizê-lo: você não é cristão. "Não vem de vós; para que ninguém se glorie". No capítulo três da Epístola aos Romanos o apóstolo se expressa com mais clareza ainda, com uma pergunta. Aí está, diz ele, o plano divino de salvação, e depois, no versículo 27, pergunta: "Onde está logo a jactância?" Ele responde, dizendo: "É excluída", é posta para fora, e a porta é fechada sobre ela; não há lugar para ela aqui.
Não admira que o apóstolo Paulo tenha tanto gosto em colocar a questão dessa maneira em especial, porque, antes da sua conversão, antes de se tornar cristão, ele bem sabia o que era jactar-se. Nunca houve uma pessoa tão satisfeita consigo ou mais segura de si do que Saulo de Tarso. Tinha orgulho próprio em todos os aspectos – orgulhava-se de sua nacionalidade, da tribo em que nascera em Israel, de haver sido criado como fariseu e de haver sentado aos pés de Gamaliel, orgulhava¬-se de sua religião, da sua moralidade, do seu conhecimento. Ele nos fala disso tudo no capítulo três da Epístola aos Filipenses. Ele costumava jactar-se. Levantava-se e dizia coisas semelhantes a estas: quem pode contestar isto? Aqui estou, um bom homem, de boa moral, religioso. Observem-me nos meus deveres religiosos, observem o meu viver, observem-me em todos os aspectos; tenho-me dedicado a esta vida piedosa e santa, e estou satisfazendo a Deus. Essa era a sua atitude. Gabava-se. Achava que era um homem de tanto valor e que tinha vivido de tal maneira que podia orgulhar-se disso. Essa era uma das suas grandes palavras. Mas chegou a ver que uma das maiores diferenças resultantes do fato de haver-se tornado cristão foi que tudo isso foi jogado fora e passou a ser irrelevante. Por isso acostumou-se a usar linguagem forte. Olhando para trás, para tudo aquilo de que tanto se jactara, ele diz: "É escória e perda!" Não se contenta em dizer que tudo aquilo era mal; é vil, é sujo, é nojento. Jactância? Foi excluída! Entretanto o apóstolo conhece tão bem o perigo neste ponto que não se contenta com uma declaração geral; ele indica particularmente dois aspectos nos quais somos propensos à jactância.
3) Dois aspectos nos quais somos propensos à jactância:
3.1) O primeiro é esta questão de obras:
"Pela graça sois salvos, e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie". É sempre com relação às obras que somos mais propensos a jactar-nos. É nesse ponto que o diabo nos tenta de maneira a mais sutil. Obras! Essa era a razão pela qual os fariseus eram os maiores inimigos de Jesus Cristo; não porque fossem meros faladores, mas porque realmente faziam coisas. Quando aquele fariseu disse (Lucas 18:12) – "Jejuo duas vezes na semana", estava falando a verdade; quando ele disse: "dou os dízimos de tudo quanto possuo", estava sendo rigoro¬samente exato. Os fariseus não falavam apenas, faziam realmente estas coisas. E é por isso que eles ficaram tão aborrecidos com a pregação do Filho de Deus e foram grandemente responsáveis pela Sua crucifixão. Seria ir longe demais dizer que é sempre mais difícil converter uma pessoa boa do que uma pessoa má? Penso que a história da Igreja prova isso. Os maiores opositores da religião evangélica sempre têm sido gente boa e religiosa. Alguns dos mais cruéis perseguidores de que fala a história da Igreja pertenciam a essa classe. Os santos sempre sofreram mais profundamente nas mãos de gente boa, de bom nível moral, religiosa. Por quê? Por causa das boas obras. O evangelho bíblico sempre denuncia a confiança nas boas obras, o orgulho pelas boas obras e a jactância acerca das boas obras, e aquelas pessoas não aguentam isso. Toda a sua posição foi edificada sobre isso – o que elas são, o que elas fizeram e o que elas estão sempre fazendo. Isso constitui toda a posição delas e, se vocês lhes tirarem isso, elas ficarão sem nada. Por isso elas odeiam a pregação realmente bíblica, e a combaterão até não poderem mais. O evangelho faz de nós mendigos. Ele nos condena, a todos e a cada um de nós. Não há diferença, Paulo afirma em toda parte, não há diferença entre o gentio, que está fora da comunidade, e o judeu religioso, aos olhos de Deus – "Não há um justo, nem um sequer". Assim, é preciso que as obras desapareçam, que não nos gabemos delas. Mas nós temos a tendência de gabar-nos delas – o nosso viver virtuoso, as nossas boas ações, as nossas observâncias religiosas, a nossa frequên¬cia aos cultos (e particularmente quando vimos de manhã bem cedo), assim por diante. São estas coisas, as nossas atividades religiosas, que nos fazem cristãos. É esse o argumento.
No entanto o apóstolo desmascara e denuncia tudo isso, e o faz com muita simplicidade, da seguinte maneira: diz ele que falar sobre as obras é voltar ao jugo da lei. Se você pensa, diz ele, que é a sua vida virtuosa que faz de você um cristão, está tornando a ficar debaixo da lei. Mas é inútil fazê-lo, diz ele, por esta razão. Se você tornar a colocar-se debaixo da lei, estará condenando a si próprio, pois "nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado". Se você quiser tentar justificar-se por sua vida e por suas obras, você estará indo direto para a condenação, porque as melhores obras do homem não são suficientemente boas aos olhos de Deus. Todos fomos condenados pela lei – "Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus". "Não há um justo, nem um sequer". Portanto, não sejam tolos, diz Paulo; não se apartem da graça, pois fazê-lo é ir para a condenação. As obras de homem nenhum serão suficientes para justificá-lo aos olhos de Deus. Que tolice, então, tornar a ficar debaixo das obras!
Mas não somente isso, no versículo dez ele explica que fazer isso é fazer o contrário do que se deve. Tais pessoas pensam que pelas suas boas obras elas se fazem cristãs, ao passo que, diz Paulo, é exatamente o contrário. "Somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas." A tragédia é que as pessoas pensam que, se tão-somente fizerem certas coisas e evitarem outras, e tiverem uma vida virtuosa, e saírem para ajudar outras pessoas, dessa maneira se tornarão cristãs. Que cegueira!, diz Paulo. Esta é a maneira de ver as boas obras: Deus nos faz cristãos para que pratiquemos boas obras. Não é uma questão de as boas obras levarem ao cristianismo, e sim de o cristianismo levar às boas obras. É exata¬mente o oposto daquilo em que as pessoas tendem a crer. Portanto, não há nada que seja tão completa contradição da verdadeira posição cristã como essa tendência que temos de jactar-nos e de pensar que, porque somos o que somos e fazemos o que fazemos, tornamo-nos cristãos. Não; Deus faz cristãos, e depois eles vão praticar as suas boas obras. A jactância é excluída. "Onde está logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé." Vemos que as obras são excluídas na questão de alguém se tornar cristão. Não devemos jactar¬-nos das nossas obras. Se de alguma forma mostrarmos que achamos que temos bondade, ou se estivermos confiantes em alguma coisa que fizemos, estaremos negando a graça de Deus. Isto é o oposto do cristianismo.
3.2) O segundo aspecto é a questão da fé:
Contudo, a lástima é que não são somente as obras e as ações que tendem a insinuar-se. Existe algo mais – a fé! A fé tende a introduzir¬-se e a fazer com que nos jactemos. Há uma grande controvérsia acerca deste versículo – "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus". A grande questão é, a que se refere a palavra "isto"? E há duas escolas de opinião. "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto (a fé) não vem de vós, é dom de Deus", diz uma escola. Mas, de acordo com a outra escola, a palavra isto não se refere à "fé", e sim à "graça", mencionada no início da frase: "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto (esta posição na graça) não vem de vós, é dom de Deus". Seria possível resolver a disputa? Não. Não é questão de gramática, não e questão de língua. Vocês verão que, como usualmente acontece, as grandes autoridades estão divididas entre as duas escolas, e é muito interessante, quase divertido, notar os lados aos quais elas pertencem. Por exemplo, se eu perguntasse qual era a opinião de Calvino sobre isso, estou certo de que vocês logo responderiam que Calvino dizia que "isto" se refere à fé, e não à graça. Mas a verdade é que Calvino disse exatamente o oposto, que "isto" se refere à "graça" e não à "fé". É uma questão que não se pode resolver. E há um sentido em que realmente isso não tem a mínima importância, porque no fim dá no mesmo. Noutras palavras, o Importante é não recair nas "obras".
Mas há muitos que fazem isso. Transformam a sua fé numa espécie de obras. Na verdade, existe muito ensino evangelístico popular atual¬mente que afirma que a diferença que o Novo Testamento faz pode ser expressa desta maneira: no Velho Testamento Deus olhava para o povo e dizia: aqui está a Minha lei, aqui estão os Dez Mandamentos; guardem¬-nos, e Eu os perdoarei e vocês serão salvos. Mas, esse ensino continua e diz: não é assim agora. Deus pôs tudo isso de lado, não existe mais lei, Deus simplesmente nos diz: "Creiam no Senhor Jesus Cristo", e vocês serão salvos. Noutras palavras, o que dizem os que tal coisa ensinam é que, crendo no Senhor Jesus Cristo, a pessoa se salva. Todavia isso é transformar a fé em obras, porque isso equivale a dizer que a nossa ação é que nos salva. Mas o apóstolo diz: "Não vem de vós". Se "isto" se refere à fé ou à graça, não Importa; "sois salvos", diz Paulo, "pela graça, e isto não vem de vós". Se é a minha fé que me salva, eu mesmo me salvei; porém Paulo afirma que isso não vem de você. De modo que jamais devo falar da minha fé de molde a fazê-la vir de mim mesmo. E não é só isso. Se me tornei cristão dessa maneira, certamente isso também me dá base para jactar-me, para gloriar-me; mas Paulo diz: "Não de obras, para que ninguém se glorie". A minha jactância tem que ser excluída totalmente.
Portanto, quando pensamos na fé, temos que ter o cuidado de examiná-la à luz do que foi dito. A fé não é a causa da salvação. Cristo é a causa da salvação. A graça de Deus no Senhor Jesus Cristo é a causa da salvação, e jamais devo falar de um modo que apresente a fé como a causa da salvação. Então, o que é a fé? A fé é apenas o instrumento pelo qual a salvação chega a muno "Pela graça sois salvos, por meio da fé." A fé é o canal, e o instrumento através do qual esta salvação, que é da graça de Deus, vem a mim. Sou salvo pela graça, "por meio da fé". A fé é simplesmente o meio através do qual a graça de Deus, que traz salvação, entra em minha vida. Portanto, devemos ser sempre extrema¬mente cautelosos, jamais dizendo que é a nossa fé que nos salva. A fé não salva, crença não salva, Cristo salva – Cristo e a Sua obra acabada. Não a minha crença, não a minha fé, não o meu entendimento, nada que eu faça – "não vem de vós", "a jactância é excluída", "pela graça, por meio da fé".
Certamente o que a passagem que inclui os três primeiros versículos deste capítulo tem por objetivo é mostrar que nenhuma outra posição é possível. Como pode alguém que está "morto" em ofensas e pecados salvar-se? Como pode alguém que é "estranho e inimigo no entendi¬mento", cujo coração está "em inimizade contra Deus" (pois é o que as Escrituras nos falam acerca do homem natural), como pode tal pessoa fazer alguma coisa que seja meritória? É impossível. A primeira coisa que acontece conosco, diz-nos o apóstolo nos versículos 4 a 7, é que fomos "vivificados". Nova vida foi introduzida em nós. Por quê? porque sem vida não podemos fazer coisa alguma. A primeira coisa que o pecador necessita é vida. Ele não pode pedir vida, pois está morto. Deus lhe dá vida, e o pecador prova que a tem crendo no evangelho. A vivificação é o primeiro passo. É a primeira coisa que acontece. Eu não peço para ser vivificado. Se eu pedisse para ser vivificado, não precisaria ser vivificado, já teria vida. No entanto, estou morto, e estou em inimizade contra Deus e a Ele me oponho, não tenho entendimento, tenho ódio. Mas Deus me dá vida. Ele me vivificou juntamente com Cristo. Portanto, a jactância é inteiramente excluída. Gloriar-me das obras, gloriar-me até da fé, isso tem que ser excluído. A salvação é inteiramente de Deus.
4) O fato de sermos cristãos é totalmente resultante da obra de Deus
Isso nos leva ao último princípio, que resumo da seguinte maneira: o fato de sermos cristãos é totalmente resultante da obra de Deus. O real problema de muitos de nós é que a nossa concepção do que é que nos faz cristãos é demasiado fraca, demasiado pobre; é a nossa incapa¬cidade de perceber a grandeza do que significa ser cristão. Paulo diz: "Somos feitura Sua"! É Deus que fez algo, é Deus que está operando; somos Sua feitura. Não trabalho nosso, mas Seu trabalho. Portanto, digo de novo, não é a nossa vida virtuosa, não são os nossos esforços todos e a esperança de por fim sermos cristãos, que nos torna cristãos. Mas permitam-me ir mais longe. Não é a nossa decisão, o nosso "decidir-nos por Cristo", que nos faz cristãos; isso é obra nossa. A decisão entra nisso, porém não é a nossa decisão que nos faz cristãos. Paulo afirma que somos feitura Sua. E assim vocês veem quão gravemente o nosso pensamento leviano e nosso falar leviano representam mal o cristianismo! Lembro¬-me de um homem muito bom – sim, um bom cristão – cujo modo de dar testemunho era sempre este: "Eu me decidi por Cristo há trinta anos, e nunca me arrependi". Era a sua maneira de expressá-lo. Não é esse o modo como Paulo descreve o tornar-se cristão. "Somos feitura Sua"! Essa é a ênfase. Não algo em que tomei parte ativa, não algo que decidi, mas algo que Deus fez por mim. Aquele homem faria melhor se se expressasse assim: há trinta anos eu estava morto em ofensas e pecados, porém Deus começou a fazer algo em mim; tomei consciência de que Deus estava lidando comigo; senti que Deus me esmagava; senti as mãos de Deus me refazendo. É assim que Paulo expressa o fato; não, eu me decidi, não, eu tive parte ativa na entrada no cristianismo, não, eu decidi seguir a Cristo, não, absolutamente. Isto tem seu papel, mas depois.
Somos feitura Sua. O cristão é alguém em quem Deus operou. E vocês podem observar que tipo de trabalho é, segundo Paulo. Não é nada menos que uma criação. "Criados em Cristo Jesus para as boas obras." O apóstolo gostava muito de dizer isso. Ouçam-no dizê-lo aos filipenses: "Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até o dia de Jesus Cristo" (1:6). DEUS! Ele começou uma boa obra em você! É obra de Deus! Ele veio quando você estava morto e o vivificou, pôs vida em você. É isso que faz de um homem um cristão. Não as suas boas obras, não a sua decisão, mas a determinação de Deus concernente a você posta em prática.
5) O cristão é uma nova criação
É aqui que vemos como as nossas ideias, em relação ao que o cristão é, estão desesperadamente aquém do ensino bíblico. O cristão é uma nova criação. Não é apenas um bom homem, ou um homem que melhorou um pouco; é um novo homem, "criado em Cristo Jesus". Ele foi introduzido em Cristo, e a vida de Cristo penetrou nele. Somos "participantes da natureza divina" (2 Pedro 1:4). "Participantes da natureza divina"! Que é um cristão? Um bom homem, um homem de boa moral, um homem que crê em certas coisas? Sim, mas infinitamente mais! Ele é um novo homem, a vida de Deus entrou em sua alma ¬"criado em Cristo", "feitura de Deus"! Você já tinha compreendido que é isso que faz de você um cristão? Não é frequentar um local de culto. Não é cumprir certos deveres. Todas estas coisas são excelentes, porém nunca nos tornam cristãos (podem tornar-nos fariseus!). Quem faz cristãos é Deus, e Ele o faz da seguinte maneira: Ele criou todas as coisas do nada no princípio, e Ele vem ao homem e o faz de novo e lhe dá nova natureza e faz dele um novo homem. O cristão é "uma nova criação", nada menos que isso.
Se você está interessado em obras, diz Paulo, vou dizer-lhe qual é o tipo de obras nas quais Deus está interessado. Não são aquelas miseráveis obras que você pode fazer como uma criatura por natureza em pecado. É uma nova classe de obras – "criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas" – as boas obras de Deus! Que quer dizer ele? Ele quer dizer que o nosso problema é não somente que a nossa ideia do cristianismo é inadequada, a nossa ideia de boas obras é ainda mais inadequada. Ponham no papel as boas obras que as pessoas pensam que são bastante boas para fazê-las cristãs. Juntem-nas e ponham no papel todas aquelas coisas em que elas estão confiando. Ponham-nas no papel, e depois levem-nas a Deus e digam: é isso que tenho feito. Que coisa ridícula! – é monstruosa. Vejam o que elas estão fazendo. Essas não são as obras em que Deus está interessado. Em que consistem as boas obras de Deus? Bem, o Sermão do Monte e a vida de Jesus Cristo dão a resposta. Não se trata apenas de um pouco de bondade e moralidade negativas, talvez fazer ocasional¬mente alguma benevolência e valorizar muito isso. Não, amor desinte¬ressado! "De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas se fez sem nenhuma reputação e tomou sobre si a forma de servo e se fez semelhante aos homens; e, achado na forma de homem humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte e morte de cruz" – dando-Se por outros sem pensar no preço. Essas são as boas obras de Deus. "Amar a Deus de todo coração e alma e mente e forças, e ao nosso próximo como a nós mesmos"! Não apenas lhe fazendo uma ocasional boa ação, mas amando-o como a si mesmo! Esquecer-se a si próprio em seu interesse por ele! São essas as boas obras de Deus e foi para essas boas obras que Ele nos criou.
Segundo esta definição, cristão é aquele que foi feito de novo conforme a imagem e modelo do Filho de Deus. É o que o apóstolo diz no capítulo quatro desta Epístola, no versículo 24, nestes termos: "E vos revistais do novo homem que segundo Deus é criado em verdadeira justiça e santidade". Não um pouco de bondade, mas santidade verda¬deira, "a santidade da verdade", e total e absoluta justiça! E já no capítulo primeiro Paulo o tinha dito no versículo quatro: "Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor". Escrevendo aos roma¬nos, ele diz: "Os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho"! Que é um cristão? Simples¬mente um bom homem? Alguém que é só um pouco melhor do que qualquer outra pessoa? Absolutamente não! Ele é como Cristo! Con¬forme à imagem do Filho de Deus! Como pode um homem que está morto em ofensas e pecados ressurgir e chegar a isso? E impossível. "Pela graça sois salvos"; "não vem de vós"; "para que ninguém se glorie". Ninguém pode alcançar isto, ninguém pode elevar-se a isto. É obra de Deus, e só de Deus. O cristão é alguém que se espera seja semelhante a Cristo. Ele tem dentro de si a vida de Cristo. "Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim." Que é cristianismo? É "Cristo em vós, a esperança da glória"; "Feitos segundo a imagem do Filho de Deus". Graças a Deus é de graça! Se não fosse de graça, não teríamos esperança, estaríamos todos arruinados, estaríamos condenados. Toda¬via, desde que é de graça, desde que é obra de Deus, desde que eu sou feitura de Deus, eu sei que, apesar de mim mesmo, apesar do pecado que ainda resta em mim, serei aperfeiçoado e me tornarei perfeito. Se isso fosse deixado conosco, não haveria nenhuma esperança para nós. Quem somos nós para enfrentar o mundo, a carne e o diabo? Mas, graças a Deus é "pela graça". Somos feitura Sua. Estamos em Suas mãos – e se Ele começou boa obra em nós, continuará com essa obra até completá-la. Se você não se render pronta e voluntariamente, Ele o castigará, tirará as suas arestas, com o cinzel as aparará para esculpi-lo. Se você está no plano de Deus, Ele o fará segundo a imagem de Cristo. Ele continuará a Sua boa obra até remover toda "mácula e ruga e coisa semelhante", e você estará na presença de Deus, "santo e irrepreensível" e "com grande alegria".
Graças a Deus não são as obras; graças a Deus não é a minha fé; graças a Deus não é nada de que eu possa me gloriar. "Longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (Gálatas 6:14). "Pela graça, por meio da fé"!
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