quarta-feira, 23 de maio de 2012

A comunhão do Espírito



Tesouros ocultosparte II

3. O Espírito da glória: nossa transfiguração.

Pedro escreve: “sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus” (1 Pe 4.14). Vamos lembrar o hábito deste apóstolo de dividar em dois os estágios da redenção: “os sofrimentos referentes a Cristo e sobre as glórias que os seguiriam”. Aqui ele parece dar a entender que o corpo místico do Senhor, a igreja, também passa pela mesma experiência da sua Cabeça, primeiro a humilhação, depois a exaltação. Mesmo no tempo da sua humilhação, a igreja é habitação do Espírito da glória, assim como a nuvem de glória repousava sobre o tabernáculo no deserto durante todo o tempo da peregrinação dos filhos de Israel. E não está Pedro dizendo a mesma coisa que Paulo, quando este usa a figura da criação que sofre: “E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo” (Rm 8.23). Ainda não alcançamos a consumação da nossa esperança, por ocasião da “manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus” (Tt 2.13). Mas o Espírito, por cujo poder essa grande mudança se efetuará, já habita em nós, concedendo-nos por Sua atual operação a garantia e o antegozo da nossa glória definitiva. E lemos isso também em outro lugar das Escrituras: “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita” (Rm 8.11). Não se diz aqui que o nosso corpo morto será objeto da vivificação do Espírito, mas sim nosso corpo mortal – corpo que ainda não provou a morte, mas é propenso à morte, e está destinado à morte se o Senhor tardar. Portanto, a vivificação referida nesse texto diz respeito mais exatamente aos santos ainda vivos, do que à ressurreição dos santos que já morreram.

É claro que a consumação dessa vivificação se dará na vinda do Senhor, quando os que morreram haverão de ressurgir, e os que estão vivos serão transformados. Mas pelo fato de o Espírito da vida habitar em nós, quem pode dizer que esse processo ainda não começou? Para esclarecer, Paulo diz: “Eis que vos digo um mistério: nem todos dormiremos, mas transformados seremos todos, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última trombeta” (1 Co 15.51,52). Ou seja, assim como na vinda de Cristo os santos já mortos serão ressuscitados, assim os santos ainda vivos serão trasladados sem ver a morte. Eles serão transformados, pelo que conseguimos compreender, assim como Jesus o foi quando ressuscitou – o corpo glorificado, livre num instante de tudo que por natureza é terreno e mortal. O Espírito Santo transformará e imortalizará tão completamente esse corpo, que ele se tornará perfeitamente conformado à semelhança do corpo glorificado de Cristo. Mas como temos o Espírito habitando em nós, gozamos as primícias (os primeiros frutos) dessa transformação na renovação diária do nosso homem interior, no auxílio e na cura e no fortalecimento que por vezes vêm ao nosso corpo por meio da vida oculta do Espírito Santo. A santificação é progressiva, aguardando ser consumada no futuro; assim também a glorificação é, de certa forma, progressiva, uma vez que pela presença do Espírito já temos a garantia da glória que haverá de ser. Edward Irving declara de forma muito bonita e resumida: “Da mesma forma que a doença é a forma visível do pecado no corpo, a antecipação da morte, o precursor da corrupção, e assim como a doença de qualquer tipo é o começo da morte, assim a vivificação do nosso corpo mortal por meio da influência interior do Espírito é a antecipação da ressurreição, a antecipação da redenção, o início da glória enquanto ainda estamos na humilhação”.

Quando é que se completa a santificação? Na morte, é a resposta que encontramos em alguns credos e manuais de teologia. Talvez seja verdade; mas não afirmamos isso, pois as Escrituras não o afirmam. Pelo que conseguimos inferir da Palavra de Deus, a data da nossa santificação ou perfeição em santidade é fixada de forma definitiva no aparecimento do Senhor “segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação”. Nossa santificação em progresso no presente é o começo da glória em nós; nossa glorificação que será então operada será a glória completada em nós. O Espírito da glória que agora opera em nós transmite e já desenvolve dentro de nós o princípio da vida perfeita. Pelo fato de termos sido feitos “participantes do Espírito Santo”, provamos “os poderes do mundo vindouro” (Hb 6.4,5), o tempo de completa libertação do pecado, da doença e da morte. Mas por enquanto apenas provamos isso; ainda não bebemos plenamente da fonte da vida imortal. É na vinda de Cristo que se consumará essa bênção: “a fim de que seja o vosso coração confirmado em santidade, isento de culpa, na presença de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus, com todos os seus santos” (1 Ts 3.13). Não somente isentos de culpa, mas sem defeitos, parece ser a condição aqui prenunciada, visto que se refere à esfera, ao ambiente da santidade.
Com isso está de acordo outro texto nessa mesma epístola: “O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Ts 5.23). O tempo estabelecido para a consumação dessa completa isenção de culpa é a vinda do Salvador em glória. E quão sugestiva é a ordem seguida na citação do homem tripartido: “vosso espírito, alma e corpo”. A nossa santificação se move de dentro para fora. Ela começa no espírito, que é o santo dos santos; o Espírito de Deus atua primeiro no espírito do homem ao renová-lo pela graça. Depois age na alma, até que por fim alcança o pátio exterior do corpo, na ressurreição e na transformação que então ocorrerá. Somente quando o corpo for glorificado é que se consumará a santificação, pois somente então o homem todo – espírito, alma e corpo – se encontrará sob o poder aperfeiçoador do Espírito.

Podemos ver a diferença entre a santificação progressiva e a santificação perfeita (ou glorificação) ao comparar alguns textos conhecidos. Já mencionamos um deles neste capítulo: “E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2 Co 3.18). Aqui encontramos graus de avanço: “de glória em glória”, e é um avanço na vida glorificada – conformação gradual com o Senhor da glória, por meio de sucessivos estágios de glória, operados pelo Espírito da glória. O fraseado dessa passagem inevitavelmente nos traz à lembrança a grande experiência de transfiguração de nosso Senhor quando, numa espécie de arrebatamento Ele foi, por um pouco, retirado “do presente século mau” (Gl 1.4 – RC)e trasladado para “o século vindouro”, levando-o a provar o seu poder quando “apareceu em glória” (Hb 6.5). Assim diz o apóstolo: “E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente” (Rm 12.2). Ou seja, pela transformação interior que opera, o Espírito Santo reproduz em nós a glorificação do Senhor, separando-nos do presente século de pecado e morte, tornando-nos semelhantes ao século vindouro, com sua ressurreição triunfante e sua perfeita restauração a Deus, quando seremos apresentados “diante da sua glória sem defeito em grande gozo” (Jd 24 – Tradução Brasileira). Esse é o nosso avanço passo a passo até a herança que nos foi predestinada; e é necessário que, no presente, seja passo a passo. “E todos nós recebemos também da sua plenitude”, mas podemos nos apropriar dessa plenitude unicamente “graça por graça” (Jo 1.16). Fomos todos feitos participantes dessa justiça, mas avançamos na posse dela unicamente “de fé em fé” (Rm 1.17). Mesmo ao passar pelo vale árido podemos fazer dali um lugar de fontes, indo “de força em força” à medida que nos colocamos “diante de Deus em Sião” (Sl 84.6). Assim, nosso crescimento na graça é o início da glória; mas o progresso é como o lento e paciente aperfeiçoamento de uma tela. Veja agora outra declaração: “Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1 Jo 3.2). Qualquer dificuldade que se tenha na interpretação dessa passagem, um pensamento parece claro de todo o contexto: a plena manifestação de Deus trará a completa perfeição dos Seus santos. Alford resume da seguinte forma o significado dessa passagem: o crente regenerado pelo conhecimento de Deus “se torna mais e mais semelhante a Deus, por ter em si a Sua semente; a plena e perfeita consumação desse conhecimento, quando o crente entrar na real fruição do próprio Deus, haverá de trazer consigo, obrigatoriamente, a inteira semelhança com Deus”. Em resumo, parece-nos que a santificação, por ocorrer na manifestação de nosso Senhor encarnado, se assemelhará à fotografia instantânea, em comparação com a lenta e paciente produção da imagem de Cristo em nosso estado presente. “...num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados” (1 Co 15.52). Daí o corpo glorificado e o espírito glorificado, há tanto tempo divorciados pelo pecado, se casarão outra vez. Enquanto esses dois estão separados pela morte, ou estão em guerra em nossa vida terrena, nossa perfeição em santidade é impossível.

É porque a ressurreição e a transformação dos santos serão instantâneas que afirmamos que a santificação será instantânea na vinda do Senhor. As Escrituras são sempre coerentes consigo mesmas, embora os autores dos livros que as compõem estivessem separados uns dos outros tanto temporal como geograficamente. Davi encontrou o mesmo tom alegre de João, embora os estudiosos insistam em dizer que ele não conhecia nada a respeito da ressurreição. “Eu, porém, na justiça contemplarei a tua face” – vê-lO como Ele é e ser feito apto para vê-lO. “... quando acordar, eu me satisfarei com a tua semelhança” – a conformação com a imagem de Deus no soar da trombeta da ressurreição (Sl 17.15). Talvez conjecturemos a respeito do que é a perfeição dos ressuscitados. Podemos encontrá-lo nesta palavra: “ressuscita corpo espiritual” (1 Co 15.44). Agora, quantas vezes o corpo domina o espírito, fazendo-o agir como não quer; mas então o espírito dominará o corpo, fazendo-o agir como quer. Numa casa dividida contra si mesma, não pode haver nem perfeição nem paz. Essa é a condição de nosso presente estado de humilhação. E não apenas o corpo, mas nosso interior imaterial pode estar em guerra com Deus. É o que o apóstolo Judas quer dizer em sua descrição de certas pessoas que se desviam, dizendo que eles são “sensuais, que não têm o Espírito” (Jd 19). A alma, o agente intermediário do homem, se podemos dizer assim, em vez de fazer aliança com nossa natureza mais elevada, o espírito, apoia a mais inferior, a carne, fazendo com que, em vez de espirituais, nos tornemos terrenos, animais (sensuais), demoníacos (Tg 3.15). O homem todo precisa ser apresentado isento de culpa na vinda do Senhor, antes que passemos ao estado de bendita perfeição. Nosso espírito precisa não somente dominar nossa alma e nosso corpo, mas esses dois últimos precisam sujeitar-se ao Santo Espírito de Deus. É dessa forma vaga e imperfeita que descrevemos a perfeição do nosso “corpo espiritual”. Agora, o corpo transporta o espírito, uma lenta carruagem, cujas rodas com freqüência são impróprias, e seus mais rápidos movimentos são forçados e vagarosos. Depois, o espírito transportará o corpo, conduzindo-o como asas do pensamento para onde quiser. O Espírito Santo, pela divina operação interior da Sua vontade, terá completado em nós a semelhança de Deus, e aperfeiçoado em nós o domínio de Deus. Daí o corpo humano estará em soberana sujeição ao espírito humano, e o espírito humano, ao Espírito de Deus, e Deus será tudo em todos.



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