Tesouros ocultos
– parte I
Na
Sua íntima união com o Seu Filho, o Espírito Santo é o único órgão pelo qual
Deus pretende comunicar ao homem a Sua própria vida, a vida sobrenatural, a
vida divina — ou seja, a Sua santidade, o Seu poder, o Seu amor, a Sua
felicidade. Para que isso aconteça, o Filho opera exteriormente; o Espírito
Santo, interiormente. — Pastor G. F.
Tophel.
A
conhecida bênção que invoca sobre nós a “comunhão do Espírito Santo” tem,
provavelmente, um significado mais profundo do que normalmente se percebe. A
palavra “comunhão” — coinonia – significa ter em comum. Ela é usada para
a comunhão dos crentes uns com os outros, e também para a comunhão deles com
Deus. O Espírito Santo, que habita em nós, é o agente por meio do qual se
efetua e se mantém essa comunhão de vida e amor. “Ora, a nossa comunhão” – diz
o apóstolo João – “é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo” (1 Jo 1.3). Mas
essa comunhão com as duas primeiras pessoas da Divindade só era possível por
meio da comunhão do Espírito Santo, a terceira pessoa. Quando prometeu o
Consolador, Jesus disse: “Ele ... há de receber do que é meu e vo-lo há de
anunciar”. Assim como o Filho, enquanto estava na terra, transmitiu aos homens
as riquezas do Pai invisível, assim o Espírito, agora, nos transmite as coisas
ocultas do Filho invisível. E, se nos pedissem a descrição, em poucas palavras,
do atual ofício do Espírito Santo, poderíamos dizer que é tornar real em nós aquilo que já é real por nós em nosso Senhor
glorificado. Toda luz e vida e calor estão armazenados para nós no sol; mas
essas coisas só podem chegar até nós através da atmosfera que se encontra entre
nós e o sol, como meio de comunicação; assim também, em Cristo, estão ocultos
“todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento”, e por meio do Espírito
Santo isso é transferido a nós. Neste capítulo, vamos tentar expor nossos
tesouros ocultos em Cristo, e refletir sobre os vários ofícios do Espírito para
no-los transmitir.
O Espírito da
vida: nossa regeneração.
Nosso
Senhor só assumiu a Sua plena prerrogativa como doador da vida para nós, depois
que tomou Seu lugar à direita de Deus. Ele esteve aqui na carne para morrer em
nosso lugar; Ele assumiu nossa natureza para crucificar em Si mesmo a nossa
vida adâmica, para destruí-la. Mas quando Ele ressurgiu de entre os mortos e Se
assentou no trono do Seu Pai, tornou-Se o doador da vida a todo o Seu corpo
místico, que é a igreja. Falar a respeito da salvação por meio da vida terrena
de Jesus é conhecer Cristo somente “segundo a carne”. Está certo que o apóstolo
diz: “se fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito
mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida”. Mas ele aqui se
refere claramente à Sua vida glorificada. E Jesus, antevendo o tempo depois da
Sua ressurreição de entre os mortos, diz: “porque eu vivo, vós também
vivereis”. O verdadeiro coração da igreja é Cristo no trono, e cada regeneração
é a pulsação desse coração nas almas nascidas do alto por meio do Espírito
Santo. O novo nascimento, por essa razão, não é uma mudança de natureza, como
às vezes é definido; é, antes, a transmissão da natureza divina, e o Espírito
Santo é agora o mediador por meio de quem essa vida é transmitida. Se tomarmos
as palavras de nosso Senhor a Nicodemus – “se alguém não nascer de novo, não
pode ver o reino de Deus” – será de grande valia buscarmos o sentido mais
profundo da expressão “de novo”, anwyen.
Algumas pessoas traduzem essa expressão como “nascer do alto”, expressão que condiz muito bem com a realidade. A
regeneração não consiste na elevação ao mais alto potencial da nossa vida
natural; mas é a vida de Deus trazida para o mais baixo ponto de
condescendência, ao coração do homem decaído. João, ao falar de Jesus como o
doador da vida, chama-O de “Quem vem das alturas” (Jo 3.31). Jesus, ao falar
aos degenerados filhos de Abraão, diz: “Vós sois cá de baixo, eu sou lá de
cima” (Jo 8.23). Chegar ao céu desenvolvendo e melhorando a sua vida
natural, tem sido o constante desejo e ilusão dos homens. Jesus, com um só
golpe de revelação, destrói essa vã esperança, dizendo ao Seu ouvinte que, a
não ser que ele nasça de Deus, que está no céu, assim como nasceu do seu pai
terreno, ele não pode ver o reino de Deus.
Há
outros que dizem que essas palavras de nosso Senhor significam “nascer do
início”. É necessário ocorrer um recomeço de vida, um retorno à fonte original
de existência. Para encontrar isso, não basta voltar ao início criador revelado
em Gênesis; precisamos retornar ao início pré-criação revelado em João, o livro
do novo gênesis. Na abertura do livro de Gênesis, encontramos Adão, que foi
criado santo, agora decaído pela tentação, com a face desviada de Deus, e
levando consigo toda a raça humana para o pecado e a morte. No início do
Evangelho de João, encontramos o Filho de Deus em santa comunhão com o Pai. “No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus”, pros ton yeon — não
meramente procedente de Deus, mas completamente voltado para Deus em eterna
comunhão. A conversão restaura o homem a essa atitude perdida: “deixando os
ídolos, vos convertestes a Deus (pros ton yeon), para servirdes o Deus vivo e
verdadeiro” (1 Ts 1.9). A regeneração restaura o homem à vida que perdeu, a
vida do Filho de Deus, a vida que jamais deixou de ter comunhão com o Pai. “Eu
lhes dou a vida eterna”, diz Jesus. É vida eterna sem fim? Sim, e também não
possui início. É incriada, diferente de tudo o mais que foi criado. É a vida do
Deus Eu Sou, em contraste com a vida de todas as almas, que um dia começam a
ser. Por meio do nascimento espiritual, adquirimos a herança divina assim como
adquirimos uma herança humana por meio do nascimento físico.
Na
breve antítese com que nosso Senhor encerra o Seu ensino sobre a necessidade do
novo nascimento, temos tanto a filosofia como a justificação dessa doutrina: “O
que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito. Não
te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo” (Jo 3.6,7). O homem
natural não pode ser transformado em homem espiritual por nenhum processo
evolutivo, por mais prolongado que seja. E não há processo de degeneração que
consiga deteriorar o homem espiritual em homem natural. Eles são, ambos, de
descendência e origem totalmente diferentes; um é de baixo, o outro é de cima.
Há somente uma forma pela qual se pode estabelecer o relacionamento da
filiação, ou seja, pela geração. O fato de Deus ter criado todos os homens não
faz deles filhos, no sentido evangélico do termo. A filiação que o Novo
Testamento enfatiza com tanta frequência baseia-se totalmente e unicamente na
experiência do novo nascimento, enquanto a doutrina da filiação universal se
apoia ou numa ousada negativa ou numa ousada pressuposição — a negação da queda
universal do homem por meio do pecado, ou a pressuposição da regeneração universal
do homem por meio do Espírito. Em ambos os casos o ensino é de “outro
evangelho”, que dará aos seus pregadores a recompensa não de uma bênção, mas de
um anátema[1].
O
contraste entre as duas vidas e a maneira em que se efetua a participação — a
coinwnia —
com a nova vida nos é comunicada nas profundas palavras de Pedro: “pelas quais
nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para que por
elas vos torneis co-participantes (coinwnoi) da natureza divina, livrando-vos
da corrupção das paixões que há no mundo”
(2 Pe 1.4). Aqui temos o contraste entre as duas fontes de vida:
(2 Pe 1.4). Aqui temos o contraste entre as duas fontes de vida:
1.
A corrupção das paixões que há no mundo.
2. A
natureza divina que está no mundo por meio da encarnação.
Eis
aqui a vida de Adão, da qual fazemos parte por meio do nascimento natural; e em
oposição a ela está a vida de Cristo, da qual fazemos parte por meio do
nascimento espiritual. Escapamos de uma, e passamos a ser co-participantes da
outra. A fonte e origem da vida natural são resumidas da seguinte forma: “a cobiça,
depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado,
gera a morte”. O Jordão é um símbolo apropriado da nossa vida natural, pois ele
nasce num alto monte e de fontes puras, mas desce cada vez mais até lançar-se
no Mar Morto, que não tem saída nenhuma. A única esperança de salvação para o
homem é ser tirado desse rio e ser trazido para a vida que flui do coração de
Deus. E o método para que isso aconteça está claramente declarado: “pelas
quais”, ou seja, por meio das preciosas e mui grandes promessas. Assim como
acontece num enxerto, primeiro é necessário cortar o tronco velho e degenerado,
para daí inserir o novo; assim também na regeneração nós somos desligados da
carne e incluídos no Espírito. E aquilo que o implante representa no enxerto, a
palavra ou promessa de Deus representa na regeneração. Ele é o meio pelo qual o
Espírito Santo é transmitido, a célula germe na qual a vida de Deus está
envolta. Por essa razão, a ênfase dada nas Escrituras sobre a apropriação da
verdade divina. Está escrito que “segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade” (Tg 1.18).
“...fostes regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive
e é permanente” (1 Pe 1.23).
É
muito profunda e significante, por isso, a palavra de Jesus a respeito do poder
regenerador das Suas palavras, no sexto capítulo do Evangelho de João. Ele dá
ênfase à diferença que existe entre as duas naturezas, a humana e a divina,
dizendo: “O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita”. E depois
Ele acrescenta: “as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida”. Da
mesma forma que Deus, na criação, soprou no homem o fôlego de vida e este se
tornou alma vivente, assim o Senhor Jesus, por meio da palavra da Sua boca, que
é o fôlego de vida, recria o homem e o torna vivo para com Deus. E comunica não
apenas vida, mas também semelhança. “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à
imagem de Deus o criou” é a maneira simples de relatar a história da origem de
uma raça inocente. Depois, segue-se a tentação e a queda, e depois o relato da
decadência de uma humanidade decaída: “Adão... gerou um filho à sua semelhança,
conforme a sua imagem”.
E
com isso, quão imenso se tornou o abismo entre essas duas origens! Há um
persistente e incansável pensamento no coração humano de que, não importa quão
diferente esteja a semelhança de Adão da semelhança de Deus, é possível
revertê-la por meio da educação e do treinamento. “Pau que nasce torto, morre
torto”, diz o provérbio. Isso é verdade; mas embora um ramo torto possa
desenvolver-se num carvalho ereto, não há esforço que consiga mudar a natureza
das plantas ao ponto de fazer os abrolhos produzirem uvas, nem os espinheiros
produzirem figos. Aqui vemos outra vez claramente a dualidade do ensino de
Jesus Cristo. “Não há árvore boa que dê mau fruto; nem tampouco árvore má que
dê bom fruto.” E qual é o remédio para uma árvore corrompida, estragada? Cortar
tudo o que é velho, e implantar novo galho e novo tronco. É somente a vida de
Deus que pode produzir a semelhança de Deus; o tipo divino está envolto na
mesma semente que contém a natureza de Deus. Por essa razão se diz que, na
regeneração, nos revestimos “do novo homem que se refaz para o pleno
conhecimento, segundo a imagem daquele
que o criou” (Cl 3.10), e recebemos a ordem de nos revestir “do novo homem,
criado segundo Deus, em justiça e
retidão procedentes da verdade” (Ef 4.24).
Em
resumo, a imagem de Deus que se perdeu não é outra vez impressa em nós, mas é
renovada dentro de nós. Cristo, nossa vida, foi “gerado pelo Espírito Santo” e
tornou-Se a fonte e a origem da vida, daí por diante, para toda a Sua igreja. A
transmissão da vida divina de Cristo à alma por meio do Espírito Santo é um
acontecimento oculto, mas de significado e consequências tão grandes que já foi
corretamente chamado de “o maior de todos os milagres”. Assim como a nossa vida
natural foi operada de forma secreta e singular, muito mais a nossa vida
espiritual. Mas esta última diz respeito à eternidade. “Quando o Senhor nasceu,
o mundo seguiu seu velho rumo, pouco consciente de que havia chegado Um que um
dia mudaria e regeria todas as coisas. Assim também, quando o novo homem é
formado no interior, a velha vida por certo tempo prossegue como antes; as ocupações
diárias, as necessidades terrenas, e muitas vezes velhas paixões e hábitos,
continuam nos atraindo. Um olho mundano vê pouca coisa nova, embora a vida que
perdura para sempre já tenha sido ressuscitada no interior e já tenha sido
formado um novo homem que herdará todas as coisas[2].”
[1] É
provável que o poeta Milton apresente a verdadeira origem dessa doutrina nas
seguintes palavras, que ele colocou nos lábios de Satanás:
“Filho de Deus
eu também sou ou fui;
E se eu fui, eu
sou; os relacionamentos perduram;
Todos os homens
são filhos de Deus.”
[2] Andrew Jukes, “The New Man” (O novo
homem), pág. 53.
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