Tesouros ocultos
– parte II
2. O Espírito de santidade: nossa
santificação.
“...
segundo o Espírito de santificação”, Cristo foi “declarado Filho de Deus em
poder,... pela ressurreição dos mortos” (Rm 1.4 - RC). Fica evidente a antítese
entre as duas naturezas de nosso Senhor, nessa passagem bíblica: Filho de Davi,
segundo a carne; Filho de Deus, segundo o Espírito. E, “segundo ele é, também
nós somos neste mundo”. Nós, que somos regenerados, temos duas naturezas, uma
derivada de Adão; a outra, de Cristo, e nossa santificação consiste no duplo
processo de mortificar e vivificar: amortecer e subjugar o que é velho, e
despertar e desenvolver aquilo que é novo. Em outras palavras, aquilo que se
operou em Cristo, que “foi morto na carne mas vivificado em espírito” é outra
vez operado em nós pela constante ação do Espírito Santo, e por meio da cruz e
da ressurreição estende a sua influência a toda a vida do cristão. Considere as
seguintes duas experiências.
A
mortificação não é o mesmo que ascetismo. Não é compunção autoimposta, mas uma
crucificação imposta por Cristo. O relacionamento de nosso Senhor com a cruz
acabou no momento em que, no Calvário, Ele gritou: “Está consumado”. Mas onde
Ele terminou, cada discípulo precisa começar: “Se alguém quer vir após mim, a
si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Porquanto, quem quiser salvar a
sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á” (Mt
16.24,25). Essas palavras, tão frequentemente repetidas por nosso Senhor, de
uma ou de outra forma, deixam claro que o princípio da morte precisa ser
operado dentro de nós, para que o princípio da vida tenha sua influência
definitiva e triunfante. No batismo, é com essa verdade que cada discípulo se
compromete solenemente: “Ou, porventura, ignorais que todos nós que fomos
batizados em Cristo Jesus
fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo
batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do
Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (Rm 6.3,4). O batismo é o
monograma do cristão; por meio dele, cada crente é selado e recebe a
certificação de que é participante da morte e da vida de Cristo; e o Espírito
Santo foi concedido para ser o Executor do contrato feito dessa forma no túmulo
simbólico de Cristo.
Quando
consideramos o grande fato da morte do crente, em Cristo, para o pecado e para
a lei, não devemos confundir aquilo que as Escrituras claramente distinguem.
Nós participamos de três mortes:
1.
Morte no pecado, nossa condição natural.
2.
Morte com relação ao pecado, nossa condição judicial.
3.
Morte para o pecado, nossa condição santificada.
1.
Morte no pecado. “... estando vós mortos nos vossos
delitos e pecados”, “E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas
transgressões” (Ef 2.1; Cl 2.13). Essa é a condição em que nos encontramos por
natureza, como participantes da queda e ruína em que a transgressão de nossos
primeiros pais imergiu toda a raça humana. É uma condição em que nos
encontramos destituídos de sensibilidade moral para com as exigências da
santidade e do amor de Deus; e nos encontramos sob a sentença de punição eterna
da lei que transgredimos. Cristo encontrou o mundo inteiro nesse estado de
morte no pecado, quando veio para ser nosso Salvador.
2.
Morte com relação ao pecado. “Assim, meus irmãos, também vós
morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo” (Rm 7.4). Essa é a
condição para a qual Cristo nos trouxe por meio do Seu sacrifício na cruz. Ele
sofreu por nós a pena devida à transgessão da lei, e por essa razão somos
vistos como quem sofreu a pena nEle. Aquilo que Ele fez é considerado como sido
feito por nós: “... julgando nós isto: um morreu por todos; logo, todos
morreram” (2 Co 5.14). Somos feitos um com Cristo, por meio da fé, e somos
identificados com Ele na cruz: “Estou crucificado com Cristo” (Gl 2.19). Essa
condição de morte com relação ao pecado, executada em nosso favor por nosso
Salvador, faz com que estejamos legalmente ou judicialmente livres da
penalidade destinada a quem transgride a lei, se consentirmos, pela fé, com
essa transação.
3.
Morte para o pecado. “Assim também vós considerai-vos
mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus” (Rm
6.11). Essa é a condição que torna real em nós aquilo que já é verdade por nós
em Cristo; é tornar prático aquilo que já é judicial. Em outras palavras, estar
morto para o poder do pecado em nós, assim como já estamos mortos para a
penalidade do pecado por meio de Jesus Cristo. Como está escrito na Epístola
aos Colossenses: “porque já estais mortos” (judicialmente, em Cristo),
“mortificai” (façam morrer, na prática), “pois, os vossos membros que estão
sobre a terra” (Cl 3.3,5 – RC). É essa a condição que o Espírito Santo estará
constantemente operando em nós, se o permitirmos. “...se, pelo Espírito,
mortificardes os feitos do corpo, certamente, vivereis” (Rm 8.13). Isso não é
algo que fazemos com nós mesmos, como a Versão Corrigida parece sugerir, ao
colocar em letra minúscula a palavra “Espírito”. O ego não é suficientemente
poderoso para conquistar-se a si mesmo, nem o espírito humano é capaz de
triunfar sobre a carne humana. Isso seria como um náufrago segurar com a mão
direita a sua própria mão esquerda; ambas afundariam nas ondas do mar. Lutero,
o reformador, dizia: “O velho Adão é forte demais para o jovem Melanchthon[1]”.
A nossa única segurança é o Espírito de Deus vencer nossa natureza carnal, por
meio da Sua vida que habita em
nós. Nosso cuidado principal, então, deve ser “andar no
Espírito” e sermos “cheios do Espírito”, e tudo o mais virá espontaneamente e
de forma inevitável. Da mesma forma que a crescente seiva da árvore expurga as
folhas que, apesar das tormentas e do frio do inverno insistem em permanecer na
árvore, assim faz o Espírito Santo em nós, quando Lhe damos pleno domínio,
subjugando e expelindo os resíduos da nossa natureza pecaminosa.
Não
é possível deixar de ver que o ascetismo é uma completa inversão da ordem de
Deus, já que o asceta procura a vida por meio da morte, em vez de encontrar a
morte por meio da vida. Nenhum grau de mortificação conseguirá jamais
conduzir-nos à santificação. Nós temos de nos despojar “do velho homem com os
seus feitos”. Mas como? Revestindo-nos “do novo homem que se refaz para o pleno
conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou”. Paulo diz: “Porque a lei
do Espírito da vida, em
Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (Rm
8.2). Aqui está uma sugestiva declaração de alguém que descreve a mudança da
antiga vida para a nova, da vida de constante derrota para a vida de vitória
por meio de Cristo: “Antigamente era um constante desligar-se, agora é uma
entrada diária”. Ou seja: antes, o esforço se concentrava em livrar-se dos
hábitos inveterados e das más inclinações da velha natureza – o egoísmo, o
orgulho, as paixões, e a vaidade. Agora, o empenho concentra-se em suplicar ao
Espírito que faça a obra, em beber da Sua divina presença, em respirar, como
uma atmosfera santa, a Sua vida sobrenatural. É somente a habitação do Espírito
que pode operar a expulsão do pecado. Isso fica claro quando consideramos
aquilo que se tem chamado de “poder expulsivo de uma nova afeição”. “Não ameis
o mundo nem as coisas que há no mundo”, dizem as Escrituras. Mas a experiência
comprova que só é possível não amar quando se ama, ou seja, o amor ao mundo é
vencido pelo amor às coisas celestiais.
Esse
método está claramente exposto na Palavra. O “amor do Espírito” (Rm 15.30) nos
é concedido para vencer o mundo. A vida divina é a fonte do amor de Deus. Por
isso, “o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos
foi outorgado”. Pelo fato de estarmos, por natureza, tão completamente sem o
amor celestial, Deus, por meio da habitação do Espírito, nos dá o Seu próprio
amor, para que O amemos. Aqui está a mais alta credencial do discipulado:
“Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos
outros” (Jo 13.35). Assim como Cristo manifestou ao mundo o amor do Pai, assim
devemos manifestar o amor de Cristo – uma manifestação, contudo, que só é possível
porque possuímos a mesma vida dEle. Alguém disse acertadamente a respeito do
mandamento do nosso Salvador (de que os Seus discípulos devem amar uns aos
outros): “É um mandamento que seria inteiramente sem valor se não fosse pelo
fato que Ele, o Amado, está pronto a colocar o Seu próprio amor em mim. O mandamento, na
verdade, é que sejamos ramos da videira verdadeira. Eu paro de viver e amar por
mim mesmo, e me rendo para expressar o amor de Cristo”.
E
aquilo que é verdade a respeito do amor de Cristo, também é verdade a respeito
da semelhança de Cristo. Como se adquire essa semelhança? Por meio da
contemplação e da imitação? Alguns ensinam isso. E é verdade, se a habitação do
Espírito envolve e circunda e poderosamente efetua tudo. Como está escrito: “E
todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do
Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como
pelo Senhor, o Espírito” (2 Co 3.18). É somente o Espírito do Senhor habitando
em nós que pode transformar-nos à imagem do Senhor que contemplamos. Quem é
capaz de conformar-se à imagem de Cristo por meio de imitação externa? Imagine
alguém desprovido de talento e de treinamento artístico sentado diante da
famosa pintura da Transfiguração, de Rafael, tentando reproduzi-la. Quão
grosseira e sem graça e sem vida seria essa obra! Mas se fosse possível que o
espírito de Rafael entrasse nesse mesmo homem e controlasse a sua mente e olhos
e mãos, seria totalmente possível que ele pintasse essa obra prima. Pois seria
meramente Rafael reproduzindo a si mesmo. Esse é o verdadeiro mistério que
ocorre com o discípulo cheio do Espírito Santo. Cristo, que é “a imagem do Deus
invisível”, é colocado diante dele como o seu divino modelo, e Cristo, pelo
Espírito, habita dentro dele como a vida divina, e Cristo é capaz de expressar
a Si mesmo a partir da vida interior para o exemplo exterior.
Naturalmente, semelhança com Cristo é apenas
outro nome para santidade. Quando, na ressurreição, nos satisfizermos com a Sua
semelhança (Sl 17.15), seremos aperfeiçoados na santidade. Isso é o mesmo que
dizer que a santificação é progressiva; ela não é como a conversão, que é
instantânea. Ao mesmo tempo temos de admitir a força do argumento de um
escritor piedoso e atento, sobre o perigo de considerá-la unicamente como um crescimento gradual. Se um cristão se considera
como “árvore plantada junto a corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu
fruto”, seu entendimento está correto. Mas deduzir que por isso o seu
crescimento será tão certo como o da árvore, que ocorrerá de modo infalível
simplesmente porque ele foi implantado em Cristo, pela regeneração, é um grave
engano. O discípulo precisa atuar de forma ativa, consciente e inteligente, no
seu próprio crescimento, diferentemente da árvore, para “confirmar a vossa
vocação e eleição”. E quando dizemos “de forma ativa”, não queremos dizer
apenas atividade própria, pois “Qual de vós, por ansioso que esteja, pode
acrescentar um côvado ao curso da sua vida?” pergunta Jesus (Mt 6.27). Mas
temos de nos render à ação de Deus no Espírito e orar no Espírito e andar no
Espírito, condições essas tão essenciais ao nosso desenvolvimento na santidade,
como a chuva e o sol o são para o crescimento do carvalho. É possível que, por
negligenciar e entristecer o Espírito, um cristão possa ser de estatura menor
quando velho do que o era em sua infância espiritual, e a sua experiência acabe
sendo um retrocesso em vez de um avanço. Por isso, ao dizer que a santificação
é progressiva, tenhamos cautela para não concluir que ela haverá de ocorrer
inevitavelmente.
Além
disso, como investigadores sinceros, temos de perguntar o que está correto e o
que está errado na doutrina da “santificação instantânea”, a qual muitas
pessoas piedosas dizem ter experimentado. Se estão falando de um estado de
perfeição sem pecado, para o qual o crente foi subitamente elevado, e de uma
libertação da natureza pecaminosa, a qual foi subitamente erradicada, temos de
considerar essa doutrina como perigosamente falsa. Mas nós consideramos que se
pode experimentar uma grande crise na vida espiritual, na qual ocorra uma
completa rendição de si mesmo a Deus e um enchimento do Espírito Santo, e se
ver liberto dos apetites e hábitos pecaminosos, e capacitado para viver em
constante vitória sobre o próprio ego, em vez de sofrer constantes derrotas. Ao
dizer isso, não afirmamos nada mais do que dizem as Escrituras: “andai no
Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne” (Gl 5.16).
A
verdade de Deus, como está revelada nas Escrituras, parece muitas vezes estar
entre dois extremos. Isso também ocorre assim, de modo enfático, com respeito à
questão que estamos considerando. Na Primeira Epístola de João, encontramos um
desses tremendos paradoxos. Primeiro, a vigorosa afirmação da pecaminosidade do
cristão: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos,
e a verdade não está em nós”; depois a vigorosa afirmação da ausência de pecado
na vida desse mesmo cristão: “Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática
de pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode
viver pecando, porque é nascido de Deus” (1 Jo 1.8; 3.9). A heresia se origina
com a divisão ou escolha de apenas um dos extremos, e quase todos os erros
graves têm surgido por se adotar a declaração de um dos extremos das
Escrituras, rejeitando o outro. Se consideramos como heresia a doutrina da
perfeição sem pecado, consideramos como maior heresia ainda o contentar-se com
a imperfeição pecaminosa. E receamos muito que um grande número de cristãos
inconscientemente fazem das palavras do apóstolo – “Se dissermos que não temos
pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos” – uma justificativa para um baixo
padrão de vida cristã. Seria quase melhor que exagerassem as possibilidades de
santificação no seu anseio de alcançar a santidade, do que subestimá-las em
complacente satisfação com uma costumeira impiedade. Com toda certeza, não é
nada edificante ver um cristão mundano jogar pedras num cristão que aspira ao
que é perfeito.
Como
poderíamos, então, enunciar de forma correta a doutrina que estamos
considerando, de forma que envolva os dois extremos da declaração, que aparecem
na Epístola de João? Pecaminoso em si
mesmo, sem pecado em Cristo – é nossa resposta: “... nele não existe pecado.
Todo aquele que permanece nele não vive pecando” (1 Jo 3.5,6). Se a vida de
Cristo, por meio do Espírito Santo, nos é constantemente transmitida, essa vida
haverá de prevalecer em nós.
Essa vida é totalmente sem pecado, tão incapaz de se
contaminar como o raio solar, que tem sua fonte e origem no sol. Nossa
libertação do pecado será diretamente proporcional à solidez da nossa
permanência nEle. E não duvidamos que há cristãos que se renderam de tal forma
a Deus, e que pelo poder sustentador do Espírito têm sido mantidos nessa
entrega, que o pecado não tem tido domínio sobre eles. Mesmo que neles o
conflito entre a carne e o espírito não tenha cessado para sempre, tem havido
vitória, com os incômodos pecados deixando de ocorrer, e “a paz de Deus”
reinando no coração.
Mas
pecar é uma coisa, e outra coisa é possuir uma natureza pecaminosa. E não vemos
nenhuma evidência nas Escrituras de que essa última seja jamais erradicada
completamente enquanto estivermos no corpo. Se pudéssemos ver a nós mesmos com
os olhos de Deus, sem dúvida descobriríamos a pecaminosidade lado a lado com
nossos mais felizes momentos de conduta sem pecado, e a sujeira de nossa velha
e decaída natureza manchando nossas mais alvas ações, de tal maneira a nos
convencer que ainda não somos perfeitos na Sua presença. Queremos apenas
enfatizar, com gratidão, este fato: assim como herdamos de Adão a natureza
incapaz de livrar-se do pecado, nós herdamos de Cristo uma natureza incapaz de
viver em pecado. Por
isso, está escrito: “Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado; porque a
sua semente permanece nele”. Pecar não é da natureza da nova natureza;
transgredir não é da constituição da “lei do Espírito da vida”. Pois quando o
homem renascido pratica o mal ele transgride a lei da sua natureza, assim como
antigamente obedecia à lei da sua velha natureza. Em resumo, antes da nossa
regeneração, vivíamos em pecado e o amávamos; uma vez que fomos regenerados,
talvez escorreguemos no pecado, mas nós o odiamos.
[1]
Filipe Melanchthon (1497-1560). Foi amigo e colaborador de Lutero. Após a morte
deste, em 1546, tornou-se líder teológico da Reforma luterana (“Martinho
Lutero, Obras Selecionadas”, vol. 8, pág. 253). — N. do T.
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