sábado, 19 de maio de 2012

A comunhão do Espírito (Continuação)




Tesouros ocultosparte II

2. O Espírito de santidade: nossa santificação.

“... segundo o Espírito de santificação”, Cristo foi “declarado Filho de Deus em poder,... pela ressurreição dos mortos” (Rm 1.4 - RC). Fica evidente a antítese entre as duas naturezas de nosso Senhor, nessa passagem bíblica: Filho de Davi, segundo a carne; Filho de Deus, segundo o Espírito. E, “segundo ele é, também nós somos neste mundo”. Nós, que somos regenerados, temos duas naturezas, uma derivada de Adão; a outra, de Cristo, e nossa santificação consiste no duplo processo de mortificar e vivificar: amortecer e subjugar o que é velho, e despertar e desenvolver aquilo que é novo. Em outras palavras, aquilo que se operou em Cristo, que “foi morto na carne mas vivificado em espírito” é outra vez operado em nós pela constante ação do Espírito Santo, e por meio da cruz e da ressurreição estende a sua influência a toda a vida do cristão. Considere as seguintes duas experiências.

A mortificação não é o mesmo que ascetismo. Não é compunção autoimposta, mas uma crucificação imposta por Cristo. O relacionamento de nosso Senhor com a cruz acabou no momento em que, no Calvário, Ele gritou: “Está consumado”. Mas onde Ele terminou, cada discípulo precisa começar: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á” (Mt 16.24,25). Essas palavras, tão frequentemente repetidas por nosso Senhor, de uma ou de outra forma, deixam claro que o princípio da morte precisa ser operado dentro de nós, para que o princípio da vida tenha sua influência definitiva e triunfante. No batismo, é com essa verdade que cada discípulo se compromete solenemente: “Ou, porventura, ignorais que todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (Rm 6.3,4). O batismo é o monograma do cristão; por meio dele, cada crente é selado e recebe a certificação de que é participante da morte e da vida de Cristo; e o Espírito Santo foi concedido para ser o Executor do contrato feito dessa forma no túmulo simbólico de Cristo.
Quando consideramos o grande fato da morte do crente, em Cristo, para o pecado e para a lei, não devemos confundir aquilo que as Escrituras claramente distinguem. Nós participamos de três mortes:

1. Morte no pecado, nossa condição natural.
2. Morte com relação ao pecado, nossa condição judicial.
3. Morte para o pecado, nossa condição santificada.

1. Morte no pecado. “... estando vós mortos nos vossos delitos e pecados”, “E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões” (Ef 2.1; Cl 2.13). Essa é a condição em que nos encontramos por natureza, como participantes da queda e ruína em que a transgressão de nossos primeiros pais imergiu toda a raça humana. É uma condição em que nos encontramos destituídos de sensibilidade moral para com as exigências da santidade e do amor de Deus; e nos encontramos sob a sentença de punição eterna da lei que transgredimos. Cristo encontrou o mundo inteiro nesse estado de morte no pecado, quando veio para ser nosso Salvador.

2. Morte com relação ao pecado. “Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo” (Rm 7.4). Essa é a condição para a qual Cristo nos trouxe por meio do Seu sacrifício na cruz. Ele sofreu por nós a pena devida à transgessão da lei, e por essa razão somos vistos como quem sofreu a pena nEle. Aquilo que Ele fez é considerado como sido feito por nós: “... julgando nós isto: um morreu por todos; logo, todos morreram” (2 Co 5.14). Somos feitos um com Cristo, por meio da fé, e somos identificados com Ele na cruz: “Estou crucificado com Cristo” (Gl 2.19). Essa condição de morte com relação ao pecado, executada em nosso favor por nosso Salvador, faz com que estejamos legalmente ou judicialmente livres da penalidade destinada a quem transgride a lei, se consentirmos, pela fé, com essa transação.

3. Morte para o pecado. “Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus” (Rm 6.11). Essa é a condição que torna real em nós aquilo que já é verdade por nós em Cristo; é tornar prático aquilo que já é judicial. Em outras palavras, estar morto para o poder do pecado em nós, assim como já estamos mortos para a penalidade do pecado por meio de Jesus Cristo. Como está escrito na Epístola aos Colossenses: “porque já estais mortos” (judicialmente, em Cristo), “mortificai” (façam morrer, na prática), “pois, os vossos membros que estão sobre a terra” (Cl 3.3,5 – RC). É essa a condição que o Espírito Santo estará constantemente operando em nós, se o permitirmos. “...se, pelo Espírito, mortificardes os feitos do corpo, certamente, vivereis” (Rm 8.13). Isso não é algo que fazemos com nós mesmos, como a Versão Corrigida parece sugerir, ao colocar em letra minúscula a palavra “Espírito”. O ego não é suficientemente poderoso para conquistar-se a si mesmo, nem o espírito humano é capaz de triunfar sobre a carne humana. Isso seria como um náufrago segurar com a mão direita a sua própria mão esquerda; ambas afundariam nas ondas do mar. Lutero, o reformador, dizia: “O velho Adão é forte demais para o jovem Melanchthon[1]”. A nossa única segurança é o Espírito de Deus vencer nossa natureza carnal, por meio da Sua vida que habita em nós. Nosso cuidado principal, então, deve ser “andar no Espírito” e sermos “cheios do Espírito”, e tudo o mais virá espontaneamente e de forma inevitável. Da mesma forma que a crescente seiva da árvore expurga as folhas que, apesar das tormentas e do frio do inverno insistem em permanecer na árvore, assim faz o Espírito Santo em nós, quando Lhe damos pleno domínio, subjugando e expelindo os resíduos da nossa natureza pecaminosa.

Não é possível deixar de ver que o ascetismo é uma completa inversão da ordem de Deus, já que o asceta procura a vida por meio da morte, em vez de encontrar a morte por meio da vida. Nenhum grau de mortificação conseguirá jamais conduzir-nos à santificação. Nós temos de nos despojar “do velho homem com os seus feitos”. Mas como? Revestindo-nos “do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou”. Paulo diz: “Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8.2). Aqui está uma sugestiva declaração de alguém que descreve a mudança da antiga vida para a nova, da vida de constante derrota para a vida de vitória por meio de Cristo: “Antigamente era um constante desligar-se, agora é uma entrada diária”. Ou seja: antes, o esforço se concentrava em livrar-se dos hábitos inveterados e das más inclinações da velha natureza – o egoísmo, o orgulho, as paixões, e a vaidade. Agora, o empenho concentra-se em suplicar ao Espírito que faça a obra, em beber da Sua divina presença, em respirar, como uma atmosfera santa, a Sua vida sobrenatural. É somente a habitação do Espírito que pode operar a expulsão do pecado. Isso fica claro quando consideramos aquilo que se tem chamado de “poder expulsivo de uma nova afeição”. “Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo”, dizem as Escrituras. Mas a experiência comprova que só é possível não amar quando se ama, ou seja, o amor ao mundo é vencido pelo amor às coisas celestiais.

Esse método está claramente exposto na Palavra. O “amor do Espírito” (Rm 15.30) nos é concedido para vencer o mundo. A vida divina é a fonte do amor de Deus. Por isso, “o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado”. Pelo fato de estarmos, por natureza, tão completamente sem o amor celestial, Deus, por meio da habitação do Espírito, nos dá o Seu próprio amor, para que O amemos. Aqui está a mais alta credencial do discipulado: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13.35). Assim como Cristo manifestou ao mundo o amor do Pai, assim devemos manifestar o amor de Cristo – uma manifestação, contudo, que só é possível porque possuímos a mesma vida dEle. Alguém disse acertadamente a respeito do mandamento do nosso Salvador (de que os Seus discípulos devem amar uns aos outros): “É um mandamento que seria inteiramente sem valor se não fosse pelo fato que Ele, o Amado, está pronto a colocar o Seu próprio amor em mim. O mandamento, na verdade, é que sejamos ramos da videira verdadeira. Eu paro de viver e amar por mim mesmo, e me rendo para expressar o amor de Cristo”.

E aquilo que é verdade a respeito do amor de Cristo, também é verdade a respeito da semelhança de Cristo. Como se adquire essa semelhança? Por meio da contemplação e da imitação? Alguns ensinam isso. E é verdade, se a habitação do Espírito envolve e circunda e poderosamente efetua tudo. Como está escrito: “E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2 Co 3.18). É somente o Espírito do Senhor habitando em nós que pode transformar-nos à imagem do Senhor que contemplamos. Quem é capaz de conformar-se à imagem de Cristo por meio de imitação externa? Imagine alguém desprovido de talento e de treinamento artístico sentado diante da famosa pintura da Transfiguração, de Rafael, tentando reproduzi-la. Quão grosseira e sem graça e sem vida seria essa obra! Mas se fosse possível que o espírito de Rafael entrasse nesse mesmo homem e controlasse a sua mente e olhos e mãos, seria totalmente possível que ele pintasse essa obra prima. Pois seria meramente Rafael reproduzindo a si mesmo. Esse é o verdadeiro mistério que ocorre com o discípulo cheio do Espírito Santo. Cristo, que é “a imagem do Deus invisível”, é colocado diante dele como o seu divino modelo, e Cristo, pelo Espírito, habita dentro dele como a vida divina, e Cristo é capaz de expressar a Si mesmo a partir da vida interior para o exemplo exterior.

 Naturalmente, semelhança com Cristo é apenas outro nome para santidade. Quando, na ressurreição, nos satisfizermos com a Sua semelhança (Sl 17.15), seremos aperfeiçoados na santidade. Isso é o mesmo que dizer que a santificação é progressiva; ela não é como a conversão, que é instantânea. Ao mesmo tempo temos de admitir a força do argumento de um escritor piedoso e atento, sobre o perigo de considerá-la unicamente como um crescimento gradual. Se um cristão se considera como “árvore plantada junto a corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto”, seu entendimento está correto. Mas deduzir que por isso o seu crescimento será tão certo como o da árvore, que ocorrerá de modo infalível simplesmente porque ele foi implantado em Cristo, pela regeneração, é um grave engano. O discípulo precisa atuar de forma ativa, consciente e inteligente, no seu próprio crescimento, diferentemente da árvore, para “confirmar a vossa vocação e eleição”. E quando dizemos “de forma ativa”, não queremos dizer apenas atividade própria, pois “Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida?” pergunta Jesus (Mt 6.27). Mas temos de nos render à ação de Deus no Espírito e orar no Espírito e andar no Espírito, condições essas tão essenciais ao nosso desenvolvimento na santidade, como a chuva e o sol o são para o crescimento do carvalho. É possível que, por negligenciar e entristecer o Espírito, um cristão possa ser de estatura menor quando velho do que o era em sua infância espiritual, e a sua experiência acabe sendo um retrocesso em vez de um avanço. Por isso, ao dizer que a santificação é progressiva, tenhamos cautela para não concluir que ela haverá de ocorrer inevitavelmente.

Além disso, como investigadores sinceros, temos de perguntar o que está correto e o que está errado na doutrina da “santificação instantânea”, a qual muitas pessoas piedosas dizem ter experimentado. Se estão falando de um estado de perfeição sem pecado, para o qual o crente foi subitamente elevado, e de uma libertação da natureza pecaminosa, a qual foi subitamente erradicada, temos de considerar essa doutrina como perigosamente falsa. Mas nós consideramos que se pode experimentar uma grande crise na vida espiritual, na qual ocorra uma completa rendição de si mesmo a Deus e um enchimento do Espírito Santo, e se ver liberto dos apetites e hábitos pecaminosos, e capacitado para viver em constante vitória sobre o próprio ego, em vez de sofrer constantes derrotas. Ao dizer isso, não afirmamos nada mais do que dizem as Escrituras: “andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne” (Gl 5.16).

A verdade de Deus, como está revelada nas Escrituras, parece muitas vezes estar entre dois extremos. Isso também ocorre assim, de modo enfático, com respeito à questão que estamos considerando. Na Primeira Epístola de João, encontramos um desses tremendos paradoxos. Primeiro, a vigorosa afirmação da pecaminosidade do cristão: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós”; depois a vigorosa afirmação da ausência de pecado na vida desse mesmo cristão: “Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática de pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus” (1 Jo 1.8; 3.9). A heresia se origina com a divisão ou escolha de apenas um dos extremos, e quase todos os erros graves têm surgido por se adotar a declaração de um dos extremos das Escrituras, rejeitando o outro. Se consideramos como heresia a doutrina da perfeição sem pecado, consideramos como maior heresia ainda o contentar-se com a imperfeição pecaminosa. E receamos muito que um grande número de cristãos inconscientemente fazem das palavras do apóstolo – “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos” – uma justificativa para um baixo padrão de vida cristã. Seria quase melhor que exagerassem as possibilidades de santificação no seu anseio de alcançar a santidade, do que subestimá-las em complacente satisfação com uma costumeira impiedade. Com toda certeza, não é nada edificante ver um cristão mundano jogar pedras num cristão que aspira ao que é perfeito.

Como poderíamos, então, enunciar de forma correta a doutrina que estamos considerando, de forma que envolva os dois extremos da declaração, que aparecem na Epístola de João? Pecaminoso em si mesmo, sem pecado em Cristo – é nossa resposta: “... nele não existe pecado. Todo aquele que permanece nele não vive pecando” (1 Jo 3.5,6). Se a vida de Cristo, por meio do Espírito Santo, nos é constantemente transmitida, essa vida haverá de prevalecer em nós. Essa vida é totalmente sem pecado, tão incapaz de se contaminar como o raio solar, que tem sua fonte e origem no sol. Nossa libertação do pecado será diretamente proporcional à solidez da nossa permanência nEle. E não duvidamos que há cristãos que se renderam de tal forma a Deus, e que pelo poder sustentador do Espírito têm sido mantidos nessa entrega, que o pecado não tem tido domínio sobre eles. Mesmo que neles o conflito entre a carne e o espírito não tenha cessado para sempre, tem havido vitória, com os incômodos pecados deixando de ocorrer, e “a paz de Deus” reinando no coração.

Mas pecar é uma coisa, e outra coisa é possuir uma natureza pecaminosa. E não vemos nenhuma evidência nas Escrituras de que essa última seja jamais erradicada completamente enquanto estivermos no corpo. Se pudéssemos ver a nós mesmos com os olhos de Deus, sem dúvida descobriríamos a pecaminosidade lado a lado com nossos mais felizes momentos de conduta sem pecado, e a sujeira de nossa velha e decaída natureza manchando nossas mais alvas ações, de tal maneira a nos convencer que ainda não somos perfeitos na Sua presença. Queremos apenas enfatizar, com gratidão, este fato: assim como herdamos de Adão a natureza incapaz de livrar-se do pecado, nós herdamos de Cristo uma natureza incapaz de viver em pecado. Por isso, está escrito: “Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado; porque a sua semente permanece nele”. Pecar não é da natureza da nova natureza; transgredir não é da constituição da “lei do Espírito da vida”. Pois quando o homem renascido pratica o mal ele transgride a lei da sua natureza, assim como antigamente obedecia à lei da sua velha natureza. Em resumo, antes da nossa regeneração, vivíamos em pecado e o amávamos; uma vez que fomos regenerados, talvez escorreguemos no pecado, mas nós o odiamos.



[1] Filipe Melanchthon (1497-1560). Foi amigo e colaborador de Lutero. Após a morte deste, em 1546, tornou-se líder teológico da Reforma luterana (“Martinho Lutero, Obras Selecionadas”, vol. 8, pág. 253). — N. do T.

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