Capítulo XXII
Sois vós tão insensatos que, tendo
começado pelo Espírito, acabeis agora pela carne?
Gálatas 3:3
Porque a circuncisão somos nós,
que servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não
confiamos na carne. Ainda que também podia confiar na carne; se algum outro
cuida que pode confiar na carne, ainda mais eu
Filipenses 3:3-4
A carne é o nome pelo qual as Escrituras indicam a nossa natureza caída
– alma e corpo. A alma na criação foi posta entre o espiritual ou divino e o
sensível ou terreno, para dar a cada um deles o que lhes é devido, e guiá-los
àquela perfeita união que resultaria no fato do homem alcançar seu destino – um
corpo espiritual. Quando a alma cedeu à tentação do sensível, ela se afastou do
governo do Espírito e pôs a si mesma sob o poder do corpo – ela se tornou
carne. E agora a carne não está apenas ausente do Espírito, mas é hostil a ele.
“A carne milita contra o Espírito”
(Gálatas 5:17).
Neste antagonismo da carne com o Espírito existem dois aspectos. Por um
lado, a carne milita contra o Espírito ao cometer pecado e transgredir a lei de
Deus. Por outro lado, sua hostilidade para com o Espírito é não menos
manifestada em sua busca de servir a Deus e fazer Sua vontade. No ceder à
carne, a alma voltou-se para si mesma em lugar do Deus a quem o Espírito a
ligava; o egocentrismo prevaleceu sobre a vontade de Deus; o egocentrismo se
tornou seu princípio governante. E agora, tão sutil e forte é este espírito do
eu que a carne, não somente em pecar contra Deus, mas também quando a alma
busca servir a Deus, ainda impõe o seu poder. Ela se recusa a permitir que
apenas o Espírito lidere, e em seus esforços para ser “religiosa” ela ainda é o grande inimigo que obstrui e apaga o
Espírito. É por causa desta falsidade da carne que muitas vezes ocorre o que
Paulo fala aos Gálatas: “Tendo começado
no Espírito, estejais agora vos aperfeiçoando na carne?”. A menos que a
rendição ao Espírito seja completa, e a espera Nele seja contínua, em
dependência e humildade, o que começou no Espírito muito rapidamente se torna
confiança na carne.
E o notável é que o que a princípio poderia parecer um paradoxo, tão
logo a carne busque servir a Deus ela se torna a força do pecado. Sabemos como
os fariseus, com sua justiça-própria e religião carnal, caíram em orgulho e
egocentralidade e se tornaram os servos do pecado. E Paulo indagou aos Gálatas
a respeito de aperfeiçoarem na carne o que começou no Espírito, advertindo-os
contra a justiça de obras, porque as obras da carne eram tão manifestas que
eles estavam em perigo de devorarem-se uns aos outros. Satanás não possui um
instrumento mais ardiloso para manter as almas em escravidão do que incitá-las
a praticar a religião na carne. Ele
sabe que o poder da carne jamais pode agradar a Deus ou vencer o pecado, e que
no devido tempo a carne que tem ganhado supremacia sobre o Espírito no serviço
a Deus afirmará e manterá esta mesma supremacia no serviço do pecado. É somente
onde o Espírito tem a liderança e o governo na vida de adoração que haverá o
poder para liderança e governo na vida de
obediência prática. Se eu hei negar o eu em meus relacionamentos com os
outros, vencer o egocentrismo, temperamento e falta de amor, eu devo primeiro
aprender a negar o eu em meu relacionamento com Deus. Ali a alma, a sede do eu,
deve aprender a curvar-se ao Espírito, onde Deus habita.
O contraste entre a adoração no Espírito e a adoração na carne é
lindamente expresso na descrição da circuncisão verdadeira feita por Paulo – a
circuncisão do coração – cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus: “Aqueles que adoram a Deus no Espírito,
gloriam-se em Cristo
Jesus e não confiam na carne”. Pondo o gloriar-se em Cristo Jesus no
centro do verso, como a essência da fé e vida cristã, ele chama a atenção, por
um lado, para o grande perigo que o rodeia e, por outro lado, a salvaguarda
pela qual o seu pleno desfrute é assegurado. Confiança na carne é aquilo que
acima de tudo torna o gloriar-se em Cristo Jesus inoperante, e adoração no Espírito é
unicamente aquilo que torna o gloriar-se em Cristo Jesus vida e
verdade. Possa o Espírito revelar-nos o que significa gloriar-se em Cristo Jesus.
Há um gloriar-se em
Cristo Jesus acompanhado por confiança na carne que tanto a
história quanto a experiência nos ensinam. Entre os Gálatas, os mestres a quem
Paulo se opôs tão fortemente eram todos pregadores de Cristo e Sua cruz. Mas
eles a pregavam não como homens ensinados pelo Espírito para conhecerem a
infinita e toda-penetrante influência da cruz, mas como aqueles que tinham tido
o Espírito de Deus no início, e que permitiram que sua própria sabedoria e pensamentos interpretassem o que a cruz significava, e assim a
reconciliaram com uma religião que em larga medida era puramente legal e então
carnal. A história das igrejas da Galácia é repetida hoje mesmo nas igrejas que
confiam estarem livres do erro dos Gálatas. Note como muitas vezes é dito que a
doutrina da justificação pela fé é o ensino principal da epístola, e a doutrina
da habitação interior do Espírito e de nosso andar pelo Espírito é pouco
mencionada.
Cristo crucificado é a sabedoria de Deus. Confiança na carne, em conexão
com o gloriar-se em Cristo, é confiança na própria sabedoria adquirida. As
Escrituras são normalmente estudadas, pregadas e recebidas no poder da mente
natural, com pouca ênfase na necessidade do ensino do Espírito. Elas são
entendidas com a mesma confiança com a qual os homens conhecem qualquer verdade
– por ensino humano e não divino – e na ausência daquela receptividade que
espera em Deus para revelar Sua verdade.
Cristo, pelo Espírito Santo, é não somente a sabedoria, mas o poder de
Deus. Confiança na carne e gloriar-se em Cristo Jesus são
vistos e sentidos em muito da obra da igreja cristã na qual o esforço e o
planejamento humano tomam um lugar mais amplo do que a espera no poder que vem
do alto. Nas maiores organizações eclesiásticas, nas igrejas separadamente, e
na vida interior do espírito e oração, vemos quantos esforços infrutíferos e
repetidos fracassos são decorrentes deste erro. Não há falta de reconhecimento
de Cristo como nossa única esperança, e nem falta de dar-Lhe o louvor que Lhe é
devido, todavia tanta confiança na carne torna tudo isto ineficaz.
Deixe-me perguntar novamente se não há muitos de vocês que buscam uma
vida de plena consagração e bênção, e que descobrem que o que temos mencionado
aqui é o segredo de seu fracasso. Quando em uma mensagem, conversa, ou oração
particular, a plenitude de Jesus foi exposta a você com a possibilidade de uma
vida santa, sua alma sentiu que tudo isto era tão maravilhoso e simples que
nada poderia retê-lo. E talvez quando você aceitou o que foi visto ser seguro e
acessível, entrou em uma alegria e poder que antes lhe eram desconhecidos. Mas
isto não permaneceu. Algo estava basicamente errado. A sua busca pela causa do
problema foi em vão. A
razão que foi dada pode ter sido que sua rendição foi incompleta, ou que sua fé
não era genuína. E ainda assim sua alma lhe assegurava de que estava pronta
para desistir de tudo e confiar em Jesus para tudo. Sua alma quase se
desesperava de uma perfeição impossível – se perfeita consagração e perfeita fé
fossem a condição da bênção. E a promessa tinha sido que seria tudo tão simples
– a vida perfeita para o pobre e o fraco.
Ouça o ensinamento da Palavra de Deus hoje: foi a confiança na carne que
confiscou o seu gloriar-se em Cristo Jesus. Foi o eu fazendo o que somente o
Espírito pode fazer; foi a alma tomando a liderança na expectativa que o
Espírito apoiaria os seus esforços, ao invés de confiar no Espírito Santo para
fazer tudo e então esperar Nele. Você seguiu Jesus sem negar o eu. Olhe
novamente para o nosso texto: Paulo nos aponta a única salvaguarda conta este
perigo: “Nós é que somos a circuncisão,
nós que servimos a Deus no Espírito e
não confiamos na carne”. Aqui estão os dois elementos da adoração
espiritual: o Espírito exalta Jesus e
humilha a carne. Se nós desejamos verdadeiramente nos gloriar em Jesus e
tê-Lo glorificado em nós; se queremos conhecer a glória de Jesus em nossa
experiência pessoal, livres da ineficácia que marca os esforços da carne,
devemos aprender o que é a adoração a Deus no Espírito.
Eu apenas reitero como verdade de Deus a partir de Sua bendita Palavra:
glorie-se em Cristo Jesus
pelo Seu Espírito. Glorie-se Nele como o glorificado que batiza com o Espírito
Santo. Em simplicidade e descanso, creia que Ele lhe deu o Seu próprio Espírito
para viver em você.
Medite nisto, creia em Sua Palavra concernente a isto, até que sua alma
se curve em temor reverente perante Deus na verdade gloriosa: o Espírito Santo
de Deus habita em você.
Renda-se à Sua liderança, sobre a qual temos aprendido não ser somente
nos pensamentos ou na mente, mas também na vida e na disposição. Renda-se a
Deus para ser guiado pelo Espírito Santo em toda a sua conduta. Ele é prometido
para todos aqueles que amam a Jesus e O obedecem. Lembre-se qual foi o objetivo
principal de sua vinda: restaurar o partinte Senhor Jesus aos Seus discípulos.
“Não vos deixarei órfãos”, disse Jesus;
“voltarei para vós outros”. Você não pode se gloriar em um Jesus distante do qual
está separado. Quando tenta fazê-lo, isto requer um grande esforço – você
precisa da ajuda da carne para isso. Você só pode se gloriar em um Salvador que é
presente, a quem o Espírito Santo revela em você. Quando Ele
o faz, a carne é rebaixada; os feitos da carne são mortificados. Toda a sua
prática de fé deve ser: eu não tenho confiança na carne. Glorio-me em Cristo Jesus. Adoro
a Deus no Espírito.
Amado crente, tendo começado no
Espírito, você deve continuar no Espírito. Cuide-se de tentar aperfeiçoar a
obra do Espírito na carne. Deixe que a “não
confiança na carne” seja o seu grito de batalha; permita que uma profunda
desconfiança da carne e temor de entristecer o Espírito por andar na carne
guarde-o humildemente diante de Deus. Ore a Deus pelo Espírito de revelação a
fim de que você possa ver Jesus como seu tudo e ver como, pelo Espírito Santo,
a vida divina pode tomar o lugar de sua vida, e Jesus ser entronizado como o
protetor e guia de sua alma.
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