quinta-feira, 15 de julho de 2010

OS JUDEUS E OS GENTIOS

Irmãos esse é o assunto do estudo da reunião de hoje. Os Judeus e os Gentios.

Que possamos receber do Senhor as verdades espirituais que ele deseja nos comunicar.

DEUS ABENÇOE A TODOS

CAPÍTULO 14

"Portanto, lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis gentios na carne, e chamados incircuncisão pelos que na carne se chamam circuncisão feita pela mão dos homens."
– Efésios 2:11
Este versículo é o começo de uma declaração que tem continuidade no versículo doze: "Que naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranhos aos concertos da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo". Mas agora chamo a atenção para o versículo onze somente.
Chegamos aqui a uma nova seção da declaração que o apóstolo Paulo faz neste capítulo dois desta Epístola. Há uma definida interrup¬ção aqui, e o apóstolo toma uma nova ideia e um novo pensamento. É importante, pois, que tenhamos claro em nossas mentes o seu argumento e o que ele pretende fazer.
O grande objetivo da Epístola é explicar e expor o grandioso propósito de Deus durante a presente era. Vem na forma de sumário no versículo dez do capítulo primeiro – assim, Deus se propusera "tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra". Esse é o grande propósito de Deus durante a presente dispensação, o grandioso propósito de Deus em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Cristo veio a este mundo – falando em termos do Seu supremo objetivo – a fim de reunir, de colocar de novo sob o Seu comando todas as coisas, tanto as do céu como as da terra. O apóstolo está interessado em explicar e expor isso aos membros da igreja de Éfeso e às outras igrejas às quais esta carta deveria ser enviada. Vimos também que o apóstolo logo passa a dizer que este propósito de Deus, grandioso e final, já está sendo posto em operação, que a própria Igreja é uma ilustração dessa verdade, no sentido de que os efésios, juntamente com outros gentios, tinham sido introduzidos na Igreja, como os judeus. Tendo dito isso, o apóstolo passa a dizer a estes efésios que a coisa mais importante para eles era que tivessem iluminados os olhos do seu entendimento.
Paulo quer que os efésios conheçam particularmente "a sobre excelente grandeza do poder de Deus para com eles". Portanto neste segundo capítulo (da Epístola) ele expõe e demonstra para eles esse grande poder. Ele ilustra para eles o que está querendo dizer. É admirável, é espantoso, que estes efésios, estes gentios, sejam membros da Igreja Cristã, lado a lado com os judeus. E só existe uma coisa que tornou isso possível, esta sobreexcelente grandeza do poder de Deus. É o mesmo poder que Deus manifestou ressuscitando o Senhor Jesus Cristo dentre os mortos.
1) Havia dois obstáculos principais entre os gentios e sua vinda para Deus
1.1) O primeiro obstáculo era o seu estado e condição em pecado
Como isso é demonstrado? Desta maneira: havia dois obstáculos principais entre estes e sua vinda para Deus, a fim de serem cristãos e membros da Igreja. O primeiro obstáculo era o seu estado e condição em pecado. O apóstolo trata disso nos dez primeiros versículos deste capítulo. Já estivemos tratando disso, não o olvidemos. Ele os faz lembrar-se do que eles eram. Mas agora são cristãos. Que foi que os mudou, que foi que os trouxe daquilo para isto? Há só uma resposta: é o poder de Deus – nada menos que isso. Lá estava aquele terrível obstáculo – e continua sendo o grande obstáculo entre todos os homens e Deus – a morte do pecado. Nada, senão o poder de Deus, poderia ter lidado com tal situação.
1.2) O segundo obstáculo era a sua posição, ou o seu "status", na economia de Deus
No entanto, havia um segundo obstáculo, mais uma coisa que se interpunha entre estes gentios e a qualidade de membros da Igreja de Cristo e o conhecimento de Deus. Que seria? Era a sua posição, ou o seu "status", na economia de Deus, e especialmente em termos da sua relação com a lei de Deus. É a esse assunto que o apóstolo se dedica neste versículo onze, continuando até o versículo doze do capítulo três.
Aí está, obviamente, outra questão vitalmente importante. Como esse primeiro obstáculo ainda opera, assim também este segundo obstáculo continua operando. Portanto, não estamos empenhados num estudo acadêmico, puramente objetivo, de algo que era real há dois mil anos. É real hoje como então. As Escrituras são sempre relevantes e contemporâneas, elas falam de nós e de todos os demais. Daí então, é de vital interesse que entendamos o ensino do apóstolo neste ponto.
Proponho-me a tratar disso apenas de maneira geral no momento, pois quero fazer uma introdução geral da seção toda. O apóstolo está desejoso de que estes efésios captem e apreendam verdadeiramente quão tremenda coisa era eles se tornarem cristãos e serem membros da Igreja Cristã. O segundo meio de que se utilizou para conseguir que eles enxergassem isso é o seguinte: "... lembrai-vos", diz ele, "de que vós noutro tempo" – e em seguida vem a descrição. É assim que ele a introduz. Será somente quando eles se lembrarem disso, e somente quando se derem conta de qual é a verdade a seu respeito, que eles poderão realmente começar a entender a grandeza do poder de Deus. Vocês jamais poderão aperceber-se da grandiosidade do poder de Deus, enquanto não se aperceberem da grandiosidade dos obstáculos que aquele poder venceu. Há muitos hoje que não veem nada na salvação cristã, que não ficam admirados face a ela, e que pensam que, provavel¬mente, Paulo era um psicopata, porque ele entrava em êxtase quando contemplava as glórias da salvação. Eles não veem nada disso; para eles não há no cristianismo nada que cause admiração, que cause espanto. Por quê? Porque nunca se deram conta do problema, porque ignoram o pecado e nada sabem da ira de Deus. Não se dão conta da natureza destes obstáculos e dificuldades. O apóstolo tinha consciência disso; e ele quer que os efésios também a tenham. O seu método para essa finalidade é lembrá-los do que eles eram e fazê-los ver como Deus venceu este segundo obstáculo. Isto, num sentido, é tão esplêndido e maravilhoso como o modo pelo qual Ele venceu o primeiro.
1.3) Naqueles tempos antigos o mundo estava dividido em dois principais grupos, judeus e gentios
Qual é o segundo obstáculo? Permitam-me expressá-lo assim: naqueles tempos antigos o mundo estava dividido em dois principais grupos, judeus e gentios. A divisão parecia absoluta, e qualquer conversa sobre reconciliação parecia descomunal e impossível. Judeu e gentio! Os judeus e os "cães"! Mas, por outro lado, os gentios tinham a sua classificação, particularmente os gregos. Para eles o mundo todo estava dividido em gregos e bárbaros – o povo inteligente, os filósofos, os gregos, de um lado; os ignorantes, os iletrados, os bárbaros de outro. Essa era a situação, e parecia completamente impossível que estes dois segmentos, estes segmentos em conflito e que se desprezavam um ao outro tão fortemente, se juntassem e se reconciliassem, muito menos que fossem vistos ajoelhar-se juntos, cultuando e adorando o mesmo Deus e o mesmo Senhor. Todavia aconteceu, diz Paulo. O espantoso é que isso é verdade. Estes efésios foram introduzidos e igualmente são membros da Igreja. Este é o fato espantoso que nada menos que "a sobreexcelente grandeza do poder de Deus" poderia fazer acontecer.
Pois bem, essa é a mensagem. A maneira pela qual o apóstolo a expressa é extremamente interessante. Vejam o versículo onze, que estamos considerando. É onde ele introduz o assunto. Vocês notaram o modo como ele o faz? Pessoas há que com frequência acham este versículo difícil, e o é até que se veja exatamente o que ele significa. Na primeira leitura parece impossível. Vejam-no de novo: "Portanto, (vós efésios), lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis gentios na carne" – e então esta longa declaração, "e chamados incircuncisão pelos que na carne se chamam circuncisão feita pela mão dos homens".
Significa isto: Paulo começa fazendo-os lembrar-se de que de fato eles eram "gentios na carne". Era um simples fato da história, um fato literal, sólido, que como gentios eles não tinham sido circuncidados. Portanto, eram "gentios na carne". "Na carne" aqui não é um contraste com "no espírito", porque, se fosse, o apóstolo pareceria estar dizendo: é verdade que vocês eram gentios na carne, porém, naturalmente, no espírito vocês estavam bem. Não é nada disso que ele quer dizer. Eis o que ele quer dizer: é um duro fato de que vocês eram gentios na carne; não tinham a marca, o sinal, o símbolo de serem judeus – vocês não tinham sido circuncidados. Mas ele não abandona o ponto aí. Poderia fazê-lo, entretanto sai numa espécie de digressão que termina no fim do versículo, e depois volta ao ponto de origem, no princípio do versículo 12. Mas a digressão vem carregada de interesse. "Portanto, lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis gentios na carne", éreis chamados incircuncisão pelos que a si mesmos se intitulavam ou se chamavam circuncisão, circuncisão na carne, feita pelas mãos. A dificuldade era que os judeus se haviam agarrado a isso, que era realmente um fato, e o tinham transformado num problema. Visto que tinham entendido mal o ensino das suas próprias Escrituras, passaram a pensar que a única coisa que realmente importava era o sinal na carne. Estavam considerando isso de maneira material, carnal, e para eles nada importava, senão a circuncisão qua1 circuncisão. Para eles isso era tudo, era da máxima importância, e nada mais importava. Eles tinham entendido errada¬mente o propósito todo, até mesmo a circuncisão propriamente dita; com isso criaram esta grande barreira, este grande obstáculo no mundo antigo. O apóstolo faz a sua colocação com estas palavras: vocês eram gentios na carne. Sim, e por aquelas pessoas que se diziam A Circuncisão vocês eram apelidados e descritos como A Incircuncisão. Os que falam somente em termos da carne e daquilo que é feito pelas mãos dos homens, pensando unicamente nesse nível, põem-se à parte e dizem: "Nós somos A Circuncisão, e aqueles outros são A Incircuncisão".
Este é um ponto muito importante que vocês devem observar quando leem as Epístolas do Novo Testamento. Vejam, por exemplo, o que Paulo escreve aos filipenses (3:3): "A circuncisão somos nós" – ¬nós, os cristãos! – "que servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne". É exatamente o mesmo ponto. Noutras palavras, para termos um verdadeiro entendimento destas Epístolas paulinas, temos que entender o ponto que ele está defendendo neste versículo. Não somente era um fato e uma verdade que os gentios não tinham sido circuncidados; desafortunadamente, os judeus tinham exagerado esse fato, e tinham feito daquilo uma parede de separação que parecia completamente irremovível.
Pois bem, essa pequena exposição é vital para ter-se entendimento de tudo o que temos para dizer. Havia dois aspectos deste segundo obstáculo que Deus tinha que vencer antes de os efésios poderem tornar¬-se cristãos. Primeiramente havia a atitude dos judeus para com os gentios. E depois, em segundo lugar, havia a atitude de Deus para com os gentios. A atitude de Deus tinha que manifestar-se porque, afinal de contas, eles não tinham sido circuncidados, não eram da semente de Abraão. Mas, antes de passarmos a isso, temos que examinar esta atitude judaica, esta "circuncisão e incircuncisão", esta divisão. Há, creio eu, um elemento próximo do sarcasmo na maneira pela qual o apóstolo se expressa – "éreis... chamados incircuncisão pelos que na carne se chamam (ou se intitulam) circuncisão feita pela mão dos homens". Vocês podem observar a ênfase que ele dá. O grande ponto que ele defende é que Deus venceu este obstáculo duplo. Ambas estas dificul¬dades foram sobrepujadas por Cristo e pelo que Ele fez. A atitude do judeu para com o gentio foi corrigida, se o judeu se tornou cristão; e a atitude de Deus para com eles também mudou. Assim, toda a questão da lei foi solucionada por nosso Senhor e Salvador. Esse é o argumento real e concreto do apóstolo.
1.4) A relevância disso tudo hoje
Permitam-me agora mostrar-lhes a relevância disso tudo hoje, porque continua sendo verdadeiro. Estamos vivendo numa era e num tempo em que há muito pensamento e muita concentração precisamente sobre este problema. O mundo está cheio de divisões e conflitos. Todos nós sabemos destes fatos; vemo-los entre nações – a tensão entre os Estados Árabes e Israel, entre o Oriente e o Ocidente, e todas as diversas subdivisões e ramificações. Divisões! – a Cortina de Ferro2, a Cortina de Bambu, e assim por diante! Contudo, essa verdade não diz respeito somente à esfera das nações e das relações internacionais; aplica-se igualmente ao que ocorre dentro das nações: classes, grupos e várias outras divisões. O mundo, em certo sentido, está repleto desta coisa toda. Assim como o mundo antigo estava dividido da maneira que vimos, assim também o mundo moderno está dividido desses vários modos. E acontece a mesma coisa com a Igreja Cristã: seitas, denominações, grupos e divisões, e barreiras. Que pena! E tudo isso está ocupando muito pensamento e muita atenção no presente. Fala-se disso interminavel¬mente, escreve-se interminavelmente sobre isso. Todo mundo está preocupado em conseguir entendimento, em obter unidade, e em tratar desse problema nestas diversas esferas. E, todavia, não pareceria que grande parte dessa conversa, desses escritos e dessas atividades é completamente vã e inútil? Parece não levar a nada; e a questão é: por quê? A resposta está no que Paulo ensina nesta passagem; pois a sua afirmação aqui, como em toda a sua Epístola, é que a única unidade digna de que dela se fale só é possível sob certas condições. A Igreja Primitiva, que consistia de judeus e gentios, foi a demonstração da verdadeira unidade. Eles foram aproximados e reunidos, dirigiam-se juntos em oração ao mesmo Pai graças ao Espírito, estavam na mesma Igreja, eram concidadãos, na verdade eram membros da mesma família. Esse é o único caminho, e todo e qualquer outro caminho que se tente não levará a nada. Para mim, uma das maiores tragédias da hora presente, especi¬almente na esfera da Igreja, é que a maior parte do tempo parece que é tomada pelos líderes para a pregação sobre unidade, em vez de pregarem o evangelho, o qual, unicamente, pode produzir unidade. O tempo é gasto com falas e conferências, interminavelmente – conferências nas quais eles "averiguam as suas dificuldades". Jamais se conseguirá unidade dessa maneira. Unicamente o evangelho produzirá unidade. E enquanto houver desacordo sobre o evangelho, será desperdício de fôlego e de energia falar sobre qualquer outro caminho para a unidade. Essa é a mensagem desta seção, como eu a vejo; e não se aplica somente à Igreja, mas também se aplica ao mundo de fora.
2) Duas questões principais que terão que ser consideradas antes de haver alguma espe¬rança de unidade e de solução dos problemas e dificuldades
Qual é o ensino, então? Permitam-me resumi-lo da seguinte maneira: o apóstolo queria fazer-nos ver que existem duas questões principais que terão que ser consideradas antes de haver alguma espe¬rança de unidade e de solução dos problemas e dificuldades. Quais são?
2.1) A primeira é que temos de compreender a causa da dificuldade
A primeira é que temos de compreender a causa da dificuldade. E preciso afirmar isso constante e interminavelmente nos dias atuais! Muito do que debalde se fala e se escreve sobre unidade e entendimento hoje deve-se inteiramente a uma só coisa, a saber, que os que o fazem nunca encararam a causa da dificuldade. É preciso ter o diagnóstico antes de fazer o tratamento. Quem se apressa a fazer tratamento sem saber com segurança qual é o diagnóstico, simplesmente não sabe o que faz. Positivamente está se arriscando. Medicar os sintomas ignorando a doença, a causa em suas raízes, é pura loucura. É porque as pessoas simplesmente não reconhecem a causa como esta passagem a ensina, que todas as suas tentativas são comprovadamente inúteis.
2.2) As diferenças tinham¬-se tornado barreiras
Aqui o apóstolo fala sobre a causa, sobre a moléstia. Vejam este caso dos judeus, como ele o coloca no versículo onze. Podemos expressá-lo da seguinte forma, como um postulado: a divisão do mundo antigo era devida a uma só coisa, e essa era que as diferenças tinham¬-se tornado barreiras, as diferenças tinham-se tornado uma "parede de separação que estava no meio". As diferenças existem, e menosprezá¬-las é tolice. As diferenças são fatos. E mesmo quando se tem verdadeira unidade, permanecem as diferenças. Todavia a tragédia é que os homens exageram as diferenças e as transformam em barreiras, em obstáculos, em "cortinas", em paredes de separação no meio. Era exatamente o que aqueles judeus estiveram fazendo. A ordenação de Deus era que houvesse judeus e gentios. Deus é que tinha formado a nação dos judeus. Havia uma real diferença. Os judeus eram circuncisos, os outros não. Mas isso não era para ser uma barreira. Deus não criou uma nação para não se importar com as outras; Ele criou a nação dos judeus para falar por meio deles ao mundo inteiro. Entretanto o judeu o tinha entendido erroneamente. Ele transformara essa diferença numa barreira, manti¬nha-se separado e desprezava os demais. A Circuncisão – A Incircuncisão!
3) Como isto se desenvolve e a que leva?
3.1) Primeiramente leva ao orgulho
Como isto se desenvolve e a que leva? Segundo o apóstolo, parece que o faz da seguinte maneira: primeiramente leva ao orgulho. É certamente um fato que o problema em foco é causado pelo orgulho, pelo ego. Esta é a causa fundamental de toda divisão, de toda barreira, de todo obstáculo. Essa é a causa de todas as barreiras de separação que se interpõem. É a causa basilar de tudo quanto divide as pessoas. O orgulho e o ego! O orgulho cega, o orgulho é um espírito poderoso que nos dirige, nos subjuga e nos domina. Sob a influência do orgulho a pessoa não pensa direito, torna-se preconceituosa. Não é capaz de ver coisa alguma como verdadeiramente é. O preconceito é uma das maiores maldições da vida, e geralmente tem a sua base e as suas raízes no orgulho. Tem o poder de cegar completamente a gente. Como funciona? Primeira¬mente impede-nos de ver os dois lados de uma questão. Para quem é governado pelo preconceito, não existe um segundo lado, há somente um, não há outro. Ele está completamente cego. Ora, essa era a atitude do judeu: "A Circuncisão", "A Incircuncisão"! Ele não admitia os gentios, ele voltava as costas para eles. Não seria essa a essência de todas as contendas?
3.2) Um falso conceito de nós mesmos
Depois, outro modo de funcionar do preconceito é este: sempre nos leva a ter um falso conceito de nós mesmos. O preconceito, e o orgulho que leva ao preconceito, não somente impedem a pessoa de ver que há outro lado; também produzem nela um conceito próprio inteiramente falso. Dessa maneira, o preconceito sempre exagera o que há de verdade a seu respeito. Era uma ordenança de Deus que o judeu fosse circuncidado, porém o judeu exagerava isso ao ponto de dizer que só havia uma verdadeira nação na terra, a nação judaica. Os outros povos eram "cães". Ele exagerava o que era verdade a seu respeito. Ele pensava que simplesmente porque era judeu, necessariamente estava em boas rela¬ções com Deus, e não precisava de mais nada. Por isso os judeus crucificaram o Filho de Deus, porque Ele lhes mostrou que isso não era verdade.
3.3) Incapazes de ver e perceber que o que quer que sejamos, e o que quer que tenhamos, não se devem a nós, mas foi Deus quem nos deu
Outra coisa que o preconceito faz é tornar-nos incapazes de ver e perceber que o que quer que sejamos, e o que quer que tenhamos, não se devem a nós, mas foi Deus quem nos deu. Os judeus tinham esquecido completamente que a circuncisão era um dom de Deus. "Somos descendência de Abraão, e nunca servimos a ninguém" (João 8:33), disseram os judeus a Cristo certa ocasião. Pobres tolos cegos! Como se pudessem responder por si! Todos nós tendemos a fazer a mesma coisa. Vejam como os homens se gabam da sua capacidade. Que direito tem o homem de gabar-se da sua capacidade? Foi ele que a produziu? Foi ele que a gerou? Não, ele nasceu com ela, foi-lhe dada por Deus. Todos estes dons nos são dados por Deus. Um homem se orgulha da sua aparência. Ele é responsável por tê-la? Ele a produziu? Não obstante, é isso que o orgulho faz, como vocês veem. Exagera o que temos, e afirma que nós o produzimos. E não se apercebe, com humildade, de que é tudo dado por Deus e vem das Suas generosas mãos. São estas as sementes da desunião, da guerra e do derramamento de sangue.
3.4) Um falso conceito dos outros
Ademais, o preconceito faz que tenhamos um falso conceito dos outros. Visto que nos faz exagerar o que temos, faz-nos também diminuir o que eles têm. Vocês o reconhecem atuando em sua própria vida, não reconhecem? Como sempre aumentamos o que é do nosso lado e tiramos do outro! Relutamos em reconhecer a bondade quando ela está nos outros: não queremos reconhecê-la. E porque não queremos, não a reconhecemos. De fato, subtraímos, tiramos até não deixar nada. O judeu estava convencido de que não havia nada de valor nos gentios; nem lhes pareciam humanos; eram "cães". Exatamente da mesma maneira o grego, com a sua cultura, considerava os outros como bárbaros, iletrados. O preconceito não se limita a diminuir e a subtrair os valores alheios, mas também passa a desprezar os outros. Pensem nas "castas inferiores e fora da lei", de Kipling, em expressões como "não britânico", "forasteiros", "Herrenvolk"3, "nativos". Aí vocês têm a fonte de muitas contendas e dificuldades. É porque essa mentalidade foi tão propensa a predominar no século passado que o mundo se defronta com tantos problemas hoje, e particularmente este nosso país, talvez. Mas é a mesma coisa com os indivíduos. É o que se dá com todos os que se deixam governar pelo orgulho e pelo ego. É como se desenvolve e funciona – exagero do que nos é lisonjeiro, diminuição e desprezo dos outros. "Chamados incircuncisão pelos que na carne se chamam (se intitulam) circuncisão feita pela mão dos homens"! Não admira que Paulo tenha sido um tanto sarcástico. Ele queria ridicularizar a coisa, e assim a retratou dessa maneira, para que todos vissem como é horrível e torpe.
4) Uma segunda grande causa de divisão, a saber, um errôneo juízo de valores
Ora, existe uma segunda grande causa de divisão, a saber, um errôneo juízo de valores. Tendo já feito referência a isto em princípio, permitam-me agora dar-lhes os detalhes. Toda a tragédia do judeu, naquele tempo, foi que ele omitiu o ponto essencial. Faltou-lhe um real juízo de valores. Ele achava que o que importava era a circuncisão. O que Paulo e outros tinham para ensinar-lhes era que o que importa é a circuncisão do espírito; que a pessoa pode ser circuncidada na carne e, ao mesmo tempo, estar condenada e perdida; que o homem que está em boas relações com Deus é o que foi circuncidado no espírito; e que isso é tão possível para o gentio como para o judeu. Mas o judeu tinha parado na carne; seu senso de valores estava errado, ele tinha interpretado mal a circuncisão. A circuncisão era meramente um sinal externo de um estado interno, espiritual. Era o que a circuncisão fora destinada a ser, porém, o judeu tinha ficado cego para isso.
4.1) Ênfase dada às aparências, às exterioridades
Notem as duas coisas que Paulo acentua: "na carne", e "feita pela mão dos homens". "Incircuncisão pelos que na carne se chamam circuncisão feita pela mão dos homens." Com a expressão "a carne" aqui, ele se refere à ênfase dada às aparências, às exterioridades e àquilo que é puramente físico. Nacionalidade! É puramente da carne. É um cabal acidente nascer numa nação, e não noutra. Certamente é um fato a existência de diferentes nações e nacionalidades; mas nós nos inclinamos a fazer exatamente o que os judeus fizeram, transformamos estas coisas em barreiras. Porque sucedeu que eu nasci em determinada nação, essa é a nação. Outro homem diz exatamente a mesma coisa acerca da sua nação. Isso é tomar uma coisa que é legítima na carne, entretanto exagerá-la até se tornar algo tremendo. Nacionalidade! As pessoas lutam por isso, dão a vida por isso, matam outras pessoas por isso. Nacionalidade! Nascimento! Família! Sangue! Como exageramos e inflamos estas coisas! Como desprezamos outras pessoas! Como estas coisas criam barreiras! O povo atribui mais significação à simples linhagem dos homens do que ao seu espírito, à sua alma, ao seu caráter, ao seu entendimento. Aquelas coisas são barreiras literais na vida; muitos são postos no ostracismo por esses motivos. A cor da pele! Pura questão da carne, mas é o tipo de coisa que leva àquela horrível frase – "castas inferiores e fora da lei". Que lástima! A alma, a mente, o espírito, não são levados em consideração. A avaliação é puramente em termos da carne. Capacidade, dinheiro, escola e instrução, posição na vida – são as coisas que têm causado divisões, disputas, miséria e infelicidade no mundo atual, e todas elas pertencem à carne.
Desafortunadamente, quando se chega aos domínios da religião, vê-se a mesma coisa. Nada causa tanta divisão como a concentração em meras exterioridades da religião. Os que mais perseguiram o nosso Senhor e que finalmente foram responsáveis por Sua morte foram os saduceus e os fariseus. Por quê? Porque só estavam interessados nas exterioridades, nas formas, nas cerimônias e nos rituais, ignorando completamente o espírito. E ainda continua sendo assim. Concentração nas formas, em belos cultos, liturgias, cerimônias, vestes e coisas desse tipo relacionadas com o culto de Deus estão dividindo as pessoas. É simplesmente a velha prática dos judeus repetida na sua forma moderna; o que pertence à carne é agarrado até vir a ser uma barreira.
Vejam, porém, por um momento a outra frase. Não somente "a carne", mas também "feita pela mão dos homens", diz Paulo, isto é, puramente humana. Quais são as coisas que estão causando divisão na Igreja hoje? Por que não nos sentamos todos juntos à mesa da comu¬nhão? Ah, diz um, você não pode vir à mesa e comer do pão e beber do vinho se não foi confirmado, se certas mãos não foram impostas sobre a sua cabeça. "Feita pela mão dos homens", vocês veem! Não importa se a pessoa nasceu de novo e tem em si o Espírito de Deus e se está vivendo como um santo a vida cristã. Não participará porque ela não foi confirmada. 4Que valor há em falar em unidade e em re-união, que vale ter grandes conferências e dar-lhes grande publicidade, se os próprios líderes de tais conferências ainda agem em termos dessas barreiras? É irreal, quase chego a dizer que é desonesto. Mas outros dizem: você não virá à mesa se não foi batizado de um modo particular. É o modo como você foi batizado que importa, e você é excluído da mesa do Senhor simplesmente por causa da quantidade de água com a qual foi batizado. "Feita pela mão dos homens"! E há outros círculos que não o admitirão à participação do pão e do vinho por causa de detalhes e minúcias semelhantes. É uma repetição da maneira de ver dos escribas, dos fariseus, dos saduceus e dos doutores da lei. Estas coisas pertencem meramente à periferia. Estamos dispostos a conceder que haja diferen¬ças de opinião sobre estas questões, porém elas jamais deveriam chegar ao centro, jamais deveriam tornar-se barreiras, jamais deveriam inter¬por-se como paredes de separação. Nunca se recuse a vir à mesa do Senhor com outra pessoa por nenhuma dessas razões.
Vocês verão tradições similares também em questões de governo e ordem da Igreja. Há os que são muito mais leais à tradição de sua denominação particular do que ao Senhor Jesus Cristo. É geralmente por acidente que eles pertencem à denominação, é simplesmente porque os seus pais pertenciam a ela, e porque foram criados nela; mas lutam por ela, brigam por causa dela. Isso vem a ser a coisa importante e vital. De algum modo, Cristo e a Sua verdade são inteiramente esquecidos e não são mencionados. "Feita pela mão dos homens", tradições humanas, lealdade a formas, tradicionalismo! São estas as coisas que levam a separações e desuniões.
5) Qual a cura?
São estas, pois, as causas. Qual a cura? O apóstolo a expõe claramente aqui. Unicamente Cristo pode curar, e a razão disso é que é necessária uma mudança do coração. Não basta apenas apelar para a boa vontade, para a bondade, para o amigável e para a fraternidade. Simples¬mente não funciona, e não funcionará; de fato nunca funcionou. Tampouco é suficiente apenas apelar em geral para que os homens e as mulheres apliquem o ensino de Cristo. Esse é o apelo popular hoje. Venham, dizem eles, vamos tornar e aplicar os ensinamentos de Cristo. Alguns pensam que, se você fizesse isso, se este país fizesse isso, de algum modo até a guerra seria banida e não haveria mais problema. A resposta a isso é, de novo, que não é verdade, simplesmente não é fato. Já foi tentado. Foi tentado nas escolas onde não acreditam mais na disciplina. Foi tentado nas prisões, onde também ninguém mais crê realmente na disciplina. E vocês veem os resultados, vocês veem o aumento da barbárie e do destemor de Deus. Mais importante que isso, porém, é algo que vai contra as Escrituras, não é bíblico, não é ensino de Deus, ensino que mostra que, enquanto o homem não vier estar "sob a graça", terá que ser mantido "sob a lei". A natureza humana é má e sempre se expressará, pelo que você tem de refreá-la, você tem que dominá-la. Quando há feras selvagens em volta de você, você tem que estar preparado para enfrentá-las. A ideia de que, se você for falar suavemente com pessoas que têm a mentalidade de Hitler elas lhes darão ouvidos e deixarão de ser agressivas, é quase patética e fátua demais, nem merecendo consideração.
5.1) Há somente um método, o método de Cristo
Não, há somente um método, o método de Cristo. Ele nos diz a verdade sobre nós. Ele faz que nos encaremos a nós mesmos. Face a face com Ele, vejo a minha total inutilidade, a minha indignidade, a minha miséria. Quando contemplo a face de Cristo, vejo que não tenho nada do que me gabar. Esqueço tudo o que tenho exagerado, todas as coisas em que tenho confiado. Aqui não sou nada, sou um mendigo. Cristo faz¬-me ver a verdade sobre mim. Você jamais conseguirá unidade entre os homens, enquanto eles não virem a verdade acerca deles próprios. Ele faz-me ver também que a mesma coisa vale realmente para todos os outros; que vale para aquela outra pessoa de quem não gosto, e vale para a outra nação; que somos todos iguais, que somos um no pecado, um no fracasso; que estamos todos debaixo da ira de Deus; que as coisas cuja importância nós temos exagerado são trivialidades. "Não há um justo, nem um sequer"; somos todos réus condenados diante de um Deus santo. Ele a todos nos humilha até ao pó. Ele já demoliu a maior parte das diferenças.
Depois Ele nos mostra que todos nós necessitamos da mesma graça, da mesma misericórdia, do mesmo amor. E juntos recebemos estas bênçãos e todos juntos as compartilhamos. Prestamos culto à mesma Pessoa e nos regozijamos na mesma salvação. Tendo compreendido isso tudo, daí em diante a minha lealdade não é a mim, e sim a Ele; e a do outro homem não é a si, mas a Ele. Assim nos esquecemos um do outro e não mais somos desconfiados, invejosos e contenciosos; vamos juntos a Ele, e juntos entoamos o Seu louvor.
Esse é o método segundo o qual Cristo o faz. Não é a aplicação do espírito de Cristo feita pelo homem. É a colocação do Espírito de Cristo dentro do homem. O homem não regenerado é incapaz de aplicar o princípio e o espírito de Cristo; ele nem quer fazê-lo. Um homem pode persuadir-se por algum tempo de que deseja fazê-lo, porém, outros não querem, e então vêm divisões, distinções e guerras. Há uma única esperança – que homens e mulheres nasçam de novo, que sejam reconciliados pelo sangue de Cristo, que Deus os perdoe, que Deus lhes dê nova natureza e novo coração, e implante neles um novo Espírito. E ao compartirem este Espírito, eles Lhe prestarão culto e O louvarão e se gloriarão nEle; agora eles já não se gloriam em si mesmos, nem em suas nações, nem em coisa alguma, a não ser no fato de que o Senhor Jesus Cristo foi crucificado por eles, e que por Ele eles foram crucificados para o mundo e o mundo foi crucificado para eles.
Esta é a única base da unidade. Não a organização, nem nenhuma outra coisa, mas a humildade do novo homem em Cristo, a vida dominada por Cristo, a vida centralizada em Cristo. Eis o que derruba todas as paredes interpostas: "de ambos os povos fez um" em Cristo. Queira Deus abrir os nossos olhos para isto em todas as nossas relações pessoais. Queira Deus abrir os olhos da Igreja para isto. Que o mundo veja que só há uma esperança de paz verdadeira, vir reunir-se aos pés do Príncipe da paz, o Rei da justiça.

1 Porque, como. Em latim no original. Nota do tradutor.

2 Esta obra, no original inglês, foi publicada em 1972 (I a edição). Nota do tradutor.

3 Povo ou nação superior. Em alemão no original. Nota do tradutor.

4 Certamente isto se aplica à profissão de fé feita por adultos batizados na infância, como também ao batismo de adultos. Nota do tradutor.

Por; D.M. Martin LLoyd Jones

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