Capítulo VIII
Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos
enviarei da parte do Pai, o Espírito
da verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim.
João15:26
Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade;
porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos
anunciará as coisas que hão de vir.
João 16:13
Deus criou o homem à Sua imagem para que, assim, este fosse capaz de ter
comunhão com Ele. No jardim do Éden, dois caminhos foram postos diante do homem
para alcançar esta semelhança com Deus. Eles eram tipificados por duas árvores:
a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. O caminho de Deus
era o primeiro: através da vida viria o conhecimento e semelhança de Deus; pela
habitação na vontade de Deus e participação da vida de Deus, o homem seria
aperfeiçoado. Ao recomendar o outro, Satanás assegurou ao homem que o
conhecimento era o que deveria ser almejado para nos fazer como Deus. Quando o
homem escolheu a luz do conhecimento em detrimento da vida de obediência, ele
adentrou o terrível caminho que leva à morte. O desejo de saber se tornou sua
maior tentação; toda a sua natureza se corrompeu, e o conhecimento era para ele
mais que a obediência e mais que a vida.
Sob o poder desse engano, que promete a felicidade no conhecimento, a
raça humana ainda é desviada. Em nenhum outro lugar se mostra mais
terrivelmente esse poder do que em conexão com a verdadeira religião e a
revelação de Deus. Mesmo quando a Palavra de Deus é aceita, a sabedoria do
mundo e da carne ainda penetram; até mesmo a verdade espiritual é roubada de
seu poder quando tomada, não pela vida do Espírito, mas pela sabedoria do
homem.
Onde a verdade penetra as partes mais interiores, como Deus deseja que
seja, ela se torna a vida do espírito. Mas é possível que ela só alcance as
partes exteriores da alma, o intelecto e a razão. Apesar de poder satisfazer a
imaginação, não será nada além de uma das muitos caminhos ou expedientes do
argumento e sabedoria humanos que nunca alcançam a verdadeira vida do espírito.
Há uma verdade do entendimento e sentimentos que é somente natural, a imagem ou
forma humana, a sombra da verdade divina. Há uma verdade que é substância e
realidade, comunicada àquele que retém a verdadeira possessão da vida das coisas de que outros somente
pensam e falam. A verdade em sombras, em forma, em pensamento, foi tudo o que a
lei pôde dar, e era nisso que a religião dos Judeus consistia. A verdade de
substância, a verdade como vida divina, foi o que Jesus trouxe como o
Unigênito, cheio de graça e de verdade. Ele mesmo é a verdade.
Ao prometer o Espírito Santo aos Seus discípulos, nosso Senhor fala
d’Ele como o Espírito da verdade. Esta verdade, que é Ele mesmo, esta verdade e
graça e vida que Ele trouxe dos céus como realidade espiritual substancial para
comunicar a nós, tem sua existência no Espírito de Deus: Ele é o Espírito, a
vida interior dessa divina verdade. Quando O recebemos, e tão profundamente
quanto O recebemos e nos doamos a Ele, Ele faz com que Cristo e a vida de Deus
sejam verdade divinamente percebida em nós. Em Seu ensino e direção na verdade, Ele não
nos dá apenas palavras, pensamentos, imagens ou impressões vindos a nós de
fora, de um livro ou um professor. Ele adentra as raízes mais profundas de
nossas vidas e planta lá a verdade de Deus como uma semente e habita nela como
vida divina. Quando em fé, expectativa e rendição esta vida é cuidada e
nutrida, Ele a aviva e fortalece para que ela viceje e espalhe sua influência
através de todo o ser. Portanto, não de fora, mas de dentro, não em palavra,
mas em poder, em vida e em verdade, o Espírito revela Cristo e tudo o que Ele
tem para nós. Ele faz com que Cristo, que para alguns tem sido somente uma
imagem ou um pensamento, um Salvador que está fora e acima de nós, seja
verdadeiro dentro de nós. O Espírito
traz com Ele a verdade, e tendo nos possuído interiormente, nos guia, conforme
possamos alcançar, em toda a verdade.
Em Sua promessa de enviar o Espírito da verdade da parte do Pai, nosso
Senhor nos diz qual será a principal obra do Espírito. É dar testemunho d’Ele:
“quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade;
porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos
anunciará as coisas que hão de vir.” (João 16:13). Dois capítulos antes Ele
disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (14:6); o Espírito da verdade não
tem outra obra senão revelar e comunicar a plenitude de graça e verdade que
estão em Cristo. Ele
desceu do Senhor glorificado nos céus para testemunhar dentro de nós, e assim
também através de nós, da realidade e poder da redenção que Cristo ali
realizou. Há crentes que temem que pensar ou falar demais da presença do
Espírito no íntimo os levará para longe do Salvador. Olhar para dentro de nós
mesmos pode resultar nisso, mas podemos ter certeza de que o reconhecimento do
Espírito dentro de nós somente irá levar a uma maior e mais plena segurança de
que somente Cristo é tudo em todos. É o Espírito que fará com que nosso conhecimento
de Cristo seja vida e verdade.
A disposição ou estado mental no qual recebemos plenamente esta condução
em toda a verdade é encontrada nas memoráveis palavras de nosso texto acerca do
Espírito; “quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a
verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos
anunciará as coisas que hão de vir”. A marca do Espírito da verdade é
ensinabilidade divina. No mistério da Santa Trindade não há nada mais belo que
isto: junto com a divina igualdade da parte do Filho e do Espírito, há também
uma perfeita subordinação. O Filho pode reivindicar que todos os homens O
honrem como honram o Pai e ainda assim não considerar como desonra dizer: “Em
verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão
somente aquilo que vir fazer o Pai;” (João 5:19). Da mesma maneira, o Espírito
da verdade nunca fala de Si mesmo. Podemos pensar que Ele certamente poderia
falar de Si mesmo, mas Ele somente fala do que ouve. O Espírito que não fala
por Si, que ouve a Deus para falar, e que somente fala quando Deus fala, este é
o Espírito da verdade.
Esta é a disposição que Ele gera naqueles que verdadeiramente O recebem:
uma gentil ensinabilidade que marca o humilde de espírito que veio a perceber
que tão inútil quanto é a sua justiça própria, também é a sua sabedoria e poder
para se agarrar à verdade espiritual. Eles reconhecem que precisam de Cristo
tanto para um como para outro, e que somente o Espírito dentro deles é o
Espírito da verdade. Ele nos mostra como, mesmo com a Palavra de Deus em nossas
mãos e em nossas línguas, podemos estar faltosos quanto àquele espírito
submissivo para o qual, somente, é revelado o significado espiritual da
Palavra. Ele abre nossos olhos para a a razão de tanta leitura bíblica,
conhecimento e pregação terem tão pouco fruto de verdadeira santidade: eles
estão à parte da sabedoria que vem do alto. Falta a marca do Espírito da
verdade. O Espírito recebe tudo o que é dito e ensinado dia a dia, passo a passo,
de Deus o Pai.
Estes pensamentos sugerem para nós um grande perigo da vida cristã –
buscar conhecer a verdade de Deus em Sua Palavra sem esperar no Espírito da verdade. O
tentador do jardim ainda se move entre nós. Conhecimento ainda é a sua maior tentação
para o povo de Deus. Quantos crentes confessariam que seu conhecimento da
divina verdade pouco faz por eles, deixando-os impotentes contra o pecado e o
mundo? Eles não experimentaram a luz e liberdade, a força e gozo que verdade
deveria trazer. É porque buscam conhecer a verdade de Deus pelo poder da
sabedoria humana ao invés de esperar no Espírito da verdade para guiá-los. Os
mais diligentes esforços para habitar em Cristo, andar como Cristo, falham
quando dependemos mais da sabedoria deste mundo do que do poder de Deus.
Estes pensamentos sugerem uma grande necessidade na vida Cristã. Jesus
disse: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e
siga-me.” (Mateus 16:24). Muitos buscam seguir a Jesus sem negar a si mesmos.
Não há nada que necessite mais de negação do que a nossa própria sabedoria, a
energia de uma mente mundana, que se manifesta nas coisas de Deus.
Aprendamos que em toda a nossa comunhão com Deus, em Sua Palavra ou em
oração, em cada ato de adoração, nosso primeiro passo deve ser um ato solene de
auto-abnegação, no qual desistimos de nosso poder para entender a Palavra de
Deus, ou mesmo para dizer nossas palavras a Ele, sem a divina liderança do
Espírito Santo. Este é o significado do chamado para estar calado diante de
Deus e em quietude esperar n’Ele, aquietar o turbilhão de pensamentos e
palavras na presença de Deus, em profunda humildade e placidez esperar, ouvir,
e dar ouvidos ao que Deus dirá.