quinta-feira, 26 de agosto de 2010

ESTUDO DO LIVRO DE EFÉSIOS


CAPÍTULO 18

"ELE É A NOSSA PAZ"


"Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um; e, derrubando a parede de separação que estava no meio, na sua carne desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz, e pela cruz reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades." - Efésios 2:14-16


INTRODUÇÃO

Temos aqui mais uma daquelas grandes declarações, majestosas e amplamente abrangentes, que com tanta regularidade e constância vemos conforme avançamos neste capítulo. Faz parte do parágrafo que começa no versículo onze e vai até o capítulo três. E também é importante, ao chegarmos a este novo passo dado pelo apóstolo, que tenhamos o argumento geral em nossas mentes. Vocês nunca poderão ver realmente as partes do argumento do apóstolo se não tiverem ao mesmo tempo o todo em mente. Não há sentido, não há verdadeira subsistência de uma parte fora do todo. Refresquemos, pois, nossa memória.
O apóstolo está demonstrando "a sobreexcelente grandeza do poder de Deus sobre nós, os que cremos". É isso que ele quer que estes efésios saibam. Ele ora no sentido de que os olhos do seu entendimento sejam abertos para que possam conhecer e captar esta verdade. Não se trata de um conhecimento humano comum; não é algo que se enquadre na mesma categoria da história ou da filosofia ou coisa semelhante; é um tipo e espécie especial de conhecimento. E só pode ser captado e apreendido quando somos iluminados pelo Espírito Santo. Por isso o apóstolo começa com essa oração. Para alguém cuja mente não esteja iluminada pelo Espírito Santo, todo este argumento é completamente irrelevante. E essa é a situação do mundo e a atitude de todos os não cristãos. Eles dizem que querem algo prático, algo relevante. Isso por causa da sua cegueira, pois, se tivessem olhos para ver, veriam que somente isto é relevante. Mas o apóstolo orou para que os crentes efésios pudessem conhecer, em particular, "a sobreexcelente grandeza do poder de Deus sobre nós, os que cremos". E ele o demonstra, vocês recordam, de duas maneiras principais. Primeiro ele mostra que eles estavam mortos em ofensas e pecados; e nada pode ressuscitar os mortos, senão o poder do Criador. Somente Deus pode ressuscitar os mortos – e Ele ressuscitou estas pessoas da morte espiritual, com Cristo, para uma novidade de vida; elas até estão assentadas com Ele nos lugares celestiais.
No entanto, havia um segundo fato, a divisão do mundo antigo entre judeus e gentios. Antes de pessoas como estes efésios, que eram gentios, pagãos, poderem tornar-se membros da Igreja, de um modo ou de outro Deus tinha que tratar dessa divisão radical. E o assunto do qual o apóstolo está tratando nestes versículos, começando com o versículo onze, é como Deus fez isso. A declaração geral é que noutro tempo eles eram gentios na carne, estavam "sem Cristo, separados da comunidade de Israel e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo; mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto". Essa é a declaração, essa é a proposição, esse é o fato espantoso.
O apóstolo sentiu, porém, que não bastava apenas ficar nisso. É algo tão maravilhoso, tão estupendo, que ele teve que dividi-lo, fragmentá¬-lo, em suas partes componentes, a fim de que eles vissem de maneira mais pormenorizada como essa realidade estonteante veio a existir.


CRISTO É A NOSSA PAZ

Ele começa esta exposição detalhada no versículo 14 com a extraordinária afirmação: "Ele (Cristo) é a nossa paz". "Porque Ele é a nossa paz" – o "porque" fazendo ligação com o que vem antes. Ele está desenvolvendo um argumento, está continuando o tema. "Porque ele é a nossa paz" – Aquele por cujo sangue fomos trazidos para perto é a nossa paz. Pois bem, essa é uma das coisas mais gloriosas ditas acerca do Senhor Jesus Cristo em qualquer lugar. De todos os termos e títulos aplicados a Ele, nenhum é mais maravilhoso do que este. Ele é a nossa paz. Esta concepção é utilizada com frequência, no Velho Testamento e no Novo, com relação a toda esta questão da salvação. Não há expressão mais bela do que a que se vê na Epístola aos Hebreus, capítulo treze, versículo vinte: "Ora o Deus de paz, que pelo sangue do concerto eterno tornou a trazer dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande pastor de ovelhas, vos aperfeiçoe em toda a boa obra, para fazerdes a sua vontade, operando em vós o que perante ele é agradável em Cristo Jesus". Aí está! Deus é "o Deus de paz". Esse é um modo muito bom de pensar na salvação; somos salvos, somos cristãos, simplesmente porque Deus é "Deus de paz". Realmente é tudo resultado disso.


Deus é Deus de paz, e produz e faz a paz, em Seu Filho Jesus Cristo e por intermédio dEle

Mas a mensagem da Bíblia é que Deus é Deus de paz, e produz e faz a paz, em Seu Filho unigênito, o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e por intermédio dEle. O resultado é que vocês veem que o Senhor é descrito nesses termos em todo o Velho Testamento, na profecia. Vocês veem, por exemplo, um homem como Jacó, no fim da sua vida longa e cheia de mudanças, abençoando os seus filhos e as várias tribos que iriam desenvolver-se daqueles filhos; e quando ele chega a Judá, diz: "O cetro não se arredará de Judá, até que venha Siló". Que é Siló? Siló é paz, o Autor da paz, o Príncipe da paz. A Jacó foi dado ver isso. Não o entendeu plenamente, porém a estes homens, inspirados pelo Espírito Santo, fora dado certo entendimento do grande propósito de Deus, e Jacó tinha visto que era de Judá que Siló viria. Siló! "Ele é a nossa paz." DELE se diz ainda que não somente é "o Rei de Justiça", mas é também "o Príncipe da Paz". São títulos atribuídos a Ele. Permitam-me lembrar-lhes também que quando, finalmente, na pleni¬tude dos tempos, o Filho de Deus nasceu, pastores que vigiavam os seus rebanhos durante a noite ouviram um grandioso hino entoado por anjos. Sua mensagem era: "Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens". E por toda parte é assim. "Ele é a nossa paz."
Esta é a essência mesma da salvação. O apóstolo se expressa desse modo a fim de nos mostrar mais ainda quão admirável e espantosa é a nossa salvação. Devo lembrar-lhes de novo que esse é o grande tema, a espécie de "leit motif"* que segue paralelamente o grande, o grandioso "motif" central propriamente dito. O apóstolo queria que estes efésios se dessem conta da natureza gloriosa da sua salvação. Isto ele expõe de diversas maneiras nos versículo 1 a 13, e aqui, no versículo 14, dá mais um passo.


É o pecado que causa a morte

Como vimos, nos versículos 1 a 10 o apóstolo nos mostra que é o pecado que causa a morte. Somente quando compre¬endemos verdadeiramente a natureza do pecado é que compreendemos verdadeiramente a natureza da salvação. É por isso que não há nada que seja tão antibíblico e tão tolo como dizer: só quero o positivo. Não se preocupe com o negativo, não fale muito sobre o pecado; queremos saber do amor de Deus e do positivo. Contudo você jamais o saberá, se não compreender o negativo. O apóstolo salienta esta verdade constan¬temente. Para medir o amor de Deus você primeiro tem que descer antes de subir. Você não parte do nível em que está e daí sobe; temos que ser tirados de um calabouço, de um poço horrível; e se você não tiver ideia da medida dessa profundidade, só medirá a metade do amor de Deus. Nos dez primeiros versículos o apóstolo nos mostra que Deus tem que vencer o pecado, pois este leva à morte espiritual.


O pecado sempre leva à separação

Feito isso, ele prossegue e nos mostra, nos versículos 11 e 13, como o pecado sempre leva à separação – separação entre os Judeus e os gentios, "chamados incircuncisão pelos que na carne se chamam circuncisão feita pela mão dos homens". Separação! Separados da comunidade de Israel e estranhos às alianças da promessa! O pecado separa o homem do homem, como também de Deus.


O pecado põe os homens em inimizade

Mas neste versículo catorze o apóstolo nos mostra que o pecado não se detém na ação de separar os homens, vai além; o pecado põe os homens em inimizade; e não somente em inimizade uns com os outros, porém também com Deus. Isso é o cúmulo do pecado, o aspecto deveras horrível do pecado; é onde se vê a extrema fealdade do pecado. O pecado não somente separa os homens de Deus e uns dos outros, produz um estado de inimizade contra Deus e de uns contra os outros. Por isso o grande problema atual é o problema da paz. Essa é a razão das conferências que se realizam. Essa é a grande preocupação de todo o mundo – não haveria um jeito de banir a guerra, de reconciliar os homens, de estabelecer uma paz durável, segura e permanente? Como poderão os homens ser reconciliados? Sabemos destas divisões, destes conflitos, no mundo inteiro, nas nações, em grupos dentro das nações, como também entre nação e nação. O mundo todo parece estar num estado de luta e inimizade. Por quê? É aí que vocês veem a relevância das Escrituras. E é neste ponto que se vê como é difícil às vezes ser paciente, como cristão. E, contudo, temos que ser pacientes. Vemos o mundo e os seus homens, os seus grandes homens, assim chamados, visivelmente perdendo tempo tentando o impossível. Às vezes é difícil ser paciente. Mais difícil ainda quando a gente vê homens, mesmo na Igreja Cristã, entendendo e interpretando de forma completamente errada as Escrituras e, por assim dizer, levantando-se diante do mundo e dizendo: vocês só têm que fazer o que lhe dizemos, e a paz que procuram e esperam logo será uma realidade. Isso é trágico; não passa de pura incapacidade de entender declarações como a que estamos considerando.


A causa radical de toda a inimizade é o orgulho do homem

O pecado é a causa do problema; põe o homem em inimizade contra Deus, e põe o homem em inimizade contra o homem. A explicação é muito simples. O pecado é essencialmente orgulho, ego. Evidentemente devemos voltar ao livro de Gênesis. Os que pensam que podem eliminar os primeiros capítulos de Gênesis e continuar tendo um evangelho cristão, estão apenas exibindo a sua ignorância. Ali vocês têm a explicação fundamental daquilo que prevalece hoje. A causa radical de toda a inimizade é o orgulho do homem; o homem interessado em si mesmo, o homem querendo impor-se como um ser autônomo, até mesmo face a Deus, e pronto a dar ouvidos às perguntas: "É assim que Deus disse?" Quem é Deus para dizer-lhe o que você pode ou não pode fazer? Homem, disse satanás, você não percebe como você é grande, como é poderoso. Deus o está mantendo como escravo, e o está usando como servo. Por que você não se levanta sobre os seus próprios pés, por que não faz afirmação do seu ser, por que não se firma em sua dignidade e não exige os seus direitos? Não se rebaixe, levante-se! E ele se levantou. Não quero ser paradoxal, mas foi porque o homem se levantou que ele caiu. Pôs-se numa posição que nunca fora planejada para ele; tentou ficar numa posição que não podia manter; e isso levou à Queda e a todas as suas terríveis consequências. Tudo devido ao orgulho, ao interesse próprio, à preocupação consigo mesmo. O homem quer bancar deus. Julga-se autônomo, julga que tem direitos; fala dos seus direitos e das suas exigências. Isso é simples manifestação de interesse próprio, de auto gratificação, de amor próprio e de louvor próprio. Ele está sempre se voltando para si mesmo e girando em torno de si. Ele é o centro. Sim, mas, desafortunadamente, todos os homens estão fazendo a mesma coisa. Aí é que entra o problema. Se somente eu existisse, não haveria problema, porém todos os outros "eu" são exatamente como eu. O resultado é que o mundo está povoado de deuses, todos afirmando o seu ser pessoal, exigindo os mesmos direitos e alegando as mesmas coisas. E os choques são inevitáveis. É uma guerra de falsos deuses. E todos se juntam na inimizade contra Deus; não significa, no entanto, que todos estejam de acordo entre si. Não! Acaso vocês não veem como este é o modelo de todos os problemas do mundo atual? Temos aí os operários se unindo contra os patrões; e os patrões contra os operários. Mas, isso significaria que eles estão muito felizes, em harmonia uns com os outros e todos se ajudando mutuamente e se sacrificando uns pelos outros? Naturalmente que não! Eles se dividem – operário contra operário, patrão contra patrão, com rivalidade, competição, ciúme e inveja. O problema existe em toda parte. A humanidade se une em inimizade contra Deus, todavia está cheia de lutas sanguinárias – o homem contra o homem, bem como o homem contra Deus.


A suprema tragédia é que o mundo não vê

Essa é a única explicação adequada acerca do mundo como ele é hoje. E a suprema tragédia é que o mundo não vê isso; nem começou a vê-lo. E isso porque ele parte da suposição de que, seja qual for a explicação, não tem relação com Deus. Somos espertos demais para crer em Deus; começamos excluindo Deus. Não pode ser assim. Seja o que for, não é religioso. Não tem a mínima ligação com Deus e com Cristo. Agora somos adultos, não somos mais crianças, de modo que não se trata disso, isso nem deve ser levado em conta. Por isso tentamos encontrar alguma outra explicação e cura. Mas o fracasso terrível é evidente por todos os lados. E, necessariamente, continuará assim, enquanto o homem não enxergar a explicação verdadeira. Ele não vê que é devido estar em más relações com Deus que ele está em más relações com os seus semelhantes.
O Senhor Jesus Cristo fala disso com muita clareza e uma vez por todas. Alguém aproximou-se dEle um dia e disse: "Mestre, qual é o grande mandamento na lei?" E esta foi a Sua resposta: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Mateus 22:36-39). Pois bem, o importante aí é observar a ordem: primeiro, a relação com Deus; segundo, a relação do homem com o seu semelhante, homem ou mulher. Toda a tragédia do mundo moderno deve-se ao fato de que o primeiro é inteiramente descartado, e os homens pensam que podem começar do segundo. Contudo você não pode fazê-lo, porque deve amar o seu próximo como a si mesmo, deve amar o seu próximo como você se ama a si mesmo. Portanto, o problema é: como devo amar a mim mesmo? E, segundo a Bíblia, eu nunca amarei a mim mesmo da maneira certa enquanto eu não me vir a mim mesmo como estou na minha relação com Deus. Portanto, não tenho a mínima possibilidade de cumprir o segundo mandamento, a não ser que já esteja esclarecido quanto ao primeiro. É impossível. E o homem hoje, não reconhecendo a Deus, não começando com Deus, e não se submetendo a Deus, está tentando reconciliar-se com o seu semelhante. E, naturalmente, não está tendo sucesso, e nunca terá. Ele está violando a lei da sua própria natureza. Ele foi feito por Deus, foi feito para Deus; e ele não se verá verdadeiramente a si próprio, e não verá verdadeiramente nenhuma outra pessoa, enquanto não se veja e não veja os outros à luz da lei de Deus, face a face com Deus.


SOMENTE CRISTO É A NOSSA PAZ

É isso que está por trás da declaração aqui: "Ele é a nossa paz". Somente Cristo é a nossa paz. Sem Ele não há paz. O mundo pode continuar a desenvolver-se intelectualmente e em todos os outros aspectos, pode aumentar o seu conhecimento da ciência, da sociologia, da psicologia e de tudo mais, pode multiplicar as suas instituições, pode instruir-nos neste e naquele aspectos, porém isso não levará a nada, porque o problema nunca poderá ser solucionado, exceto em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e por meio dEle. É quase incrível que seja necessário dizer isso. Mas é. A história prova isso cabalmente. O século vinte deveria ter sido o melhor e o mais grandioso século que o mundo já conheceu, conforme e entendimento humano. Vejam-no, porém. É um dos piores, um dos mais aterradores. Isso é muito deprimente, dirá alguém, não devo estar tão deprimido assim. A resposta é que não é questão de depressão, é questão de encarar os fatos. Se você está realmente preocupado com o problema do homem e do mundo, como está com o seu próprio problema, terá que enfrentá-lo radical¬mente. E aí estão os fatos. Se você tentar partir do segundo mandamento, isso levará ao desastre, porque o homem não é meramente intelecto, não é meramente um ser social. Segundo as Escrituras, há um princípio mau atuando nele; ele está infeccionado pelo pecado, espiritualmente está mal de saúde. E antes de começar a instruí-lo, você terá de curá-lo. Ele precisa de nova vida. O apóstolo o diz em termos de uma declaração geral que, é claro, é totalmente consoante com o cristianismo – "Ele (e somente Ele) é a nossa paz".


Ele (Cristo), pessoalmente, é a nossa paz

Ora, isso significa várias coisas. Primeiramente e acima de tudo, significa que Ele, pessoalmente, é a nossa paz. O que quero dizer com isso é que o Senhor Jesus Cristo não somente faz a paz – Ele faz a paz, como espero demonstrar-lhes – mas Ele mesmo é a paz. Ele é a nossa paz. O que é simplesmente outra maneira de dizer que nós temos que estar em Cristo, antes de podermos gozar as bênçãos de Deus como o Deus da paz. Somente quando estivermos relacionados com Cristo, somente quando estivermos incorporados em Cristo, ou, para usar uma expressão bíblica, enxertados em Cristo, somente quando formos membros de Cristo e partes do Seu corpo, participando da vida de Cristo e haurindo da vida de Cristo – somente quando tudo isso for real em nós é que realmente gozaremos as bênçãos da paz. Mais uma vez, quando compreendermos isso, veremos a indescritível superficialidade de muita coisa que se diz nos dias atuais. Não quero que me entendam mal, nem quero faltar com o respeito para com os chamados pacifistas, todavia o real problema com aquele ensino é a sua falta de entendimento teológico, e a sua incapacidade de compreender o problema do pecado. E isso não se aplica somente ao caso deles, mas também a toda conversa leviana dos homens e mulheres que dizem que o problema é muito simples, que tudo que é preciso fazer é convidar o povo para reunir-se e falar-lhe agradavelmente, terminando tudo com um aperto de mãos, e tudo estará bem. Houve estadistas que acreditavam sincera e genuina¬mente que se tão-somente pudessem reunir-se com Hitler ao redor de uma mesa e conversar com ele, toda a coisa seria resolvida. "A paz em nosso tempo", diziam eles, "nós nos reunimos com eles, fizemos um acordo de cavalheiros." No entanto, não demorou muito, e eles desco¬briram que o homem cujas mãos eles tinham apertado não era um cavalheiro. E esse continua sendo o problema. Quão superficial, quão patético, pensarem ainda os homens que mediante frases feitas podem resolver os problemas do pecado do homem. Não, "Ele é a nossa paz"; Ele, o eterno Filho de Deus, que teve que nascer como uma criança em Belém. É isso que foi essencial para solucionar este problema. E, todavia, eles dizem que simplesmente sendo bom, agradável e amistoso, e falando através de uma mesa, podem acertar tudo. Se fosse tão simples assim, a encarnação jamais precisaria ter ocorrido, a morte na cruz nunca teria acontecido; mas, antes de poder haver paz, estas coisas tiveram que acontecer. Ele mesmo, a Pessoa bendita, é a nossa paz. E é somente quando entendemos algo desta mística doutrina do cristão como mem¬bro do corpo de Cristo é que verdadeiramente participamos dessa paz e a usufruímos.


Ele também faz a paz

Entretanto Ele também faz a paz, diz o apóstolo. Este é um ponto sobre o qual devemos ter claro entendimento. Como Cristo faz a paz? Devemos interpretar isso escrituristicamente, não sentimentalmente. Notem os termos: "Ele é a nossa paz"; e depois, Ele fez a paz – "fazendo a paz". Que é que significa isso? A interpretação superficial, senti¬mental dos textos a que me referi, parece entender que o processo é o seguinte: o Senhor Jesus Cristo nos ensina a fazer a paz. Dizem tais intérpretes: "Você lê as Escrituras e depois, no espírito das Escrituras, e daquilo que você entendeu das Escrituras, procure o seu inimigo, ponha em prática o ensino, e você o ganhará". O argumento, ao nível internacional, é que, se uma só nação simplesmente se desarmasse completamente, o efeito que causaria sobre todas as outras nações seria tão estonteante que nunca mais quereriam outra guerra.
Uma vez ouvi um homem falar numa reunião, creio que uns trinta e cinco minutos, e que nesse espaço de tempo nos conduziu, assim pensou ele, através de toda a Epístola dos Efésios sem nenhuma dificuldade! Disse-nos que a sua mensagem era deleitavelmente sim¬ples. Era um pacifista muito conhecido e que tinha sofrido bastante pelo seu pacifismo; homem honesto, homem sincero, um bom homem. O que ele entendia do nosso texto (Efésios 2:14-16) era que ele simplesmente consistia numa questão de aplicar o ensino de Cristo e o espírito cristão. O clímax do seu discurso foi uma história que ele nos contou e que, para ele, provava inteiramente o ponto. Disse ele que fazia parte do corpo diretivo de uma escola para meninas, escola pública, e ele nos contou que vários colegas de direção sentiam-se mal com o fato de haver punições e recompensas na escola. As crianças que procediam mal eram punidas de várias maneiras, e ele e outros achavam que esse não era o método de Cristo, não era o método cristão. Não devia haver nenhuma punição, nenhuma disciplina nesse sentido; em vez disso, as crianças deveriam ser convidadas a agir como adultos, deveriam revestir-se de dignidade, e deveria ser-lhes dito que no futuro seriam tratadas como adultos, e que os inspetores e inspetoras de alunos confiariam nelas. Assim, disse ele, após muitos anos, eles persuadiram os seus colegas da junta diretora e o corpo docente a concordarem nisso, e naquela escola em especial todas as formas de punição foram abolidas. Disse ele: alguns dos nossos amigos, naturalmente, tinham profetizado que isso levaria ao desastre, mas vocês sabem, continuou ele, no mesmo ano em que fizemos isso, o número de admissões em Oxford e Cambridge foi mais alto do que nunca antes. É isso que acontece, disse ele, quando se põe em prática o amor de Cristo. Aí está! Tão simples! Simplesmente aplicar o ensino. Faça isso individualmente, faça-o em comunidades, em grupos e em classes; faça-o entre países, e nunca mais haverá problema algum!
Que perversão das Escrituras! Seria realmente necessário que o Filho de Deus deixasse as cortes celestiais se a resposta fosse essa? A morte de cruz seria necessária, se a solução fosse apenas uma questão de aplicar algum ensino? Não é o que nos é dito aqui. Ele, Cristo, fez a paz. Não é que Ele me manda fazer algo – Ele faz isso, é certo, mas eu só posso fazer o que Ele me diz porque Ele fez algo primeiro. Ele fez a paz. Ele é a nossa paz. Ele é o Príncipe da paz. É o Deus de paz que faz a paz. Não é primariamente os homens aplicarem certo ensino, é algo fundamental feito por Deus em Cristo que produz uma situação intei¬ramente nova. É por isso que não me canso de dizer que o dever da Igreja Cristã não consiste meramente em dar conselho aos estadistas e a outros, e em dizer-lhes como solucionar os seus problemas; pois não poderá haver paz entre os homens enquanto os homens não se tornarem cristãos. É impossível. Por isso o evangelho é necessário, por isso Cristo veio. Não se pode aplicar a não cristãos um ensino destinado aos cristãos. Fazê-lo é uma rematada heresia. Estas Epístolas não foram escritas para o mundo, foram escritas para os cristãos. Temos que nascer de novo, temos que ser criados de novo, antes de ser possível que isso se aplique a nós. Cristo faz a paz. Essa é a proposição fundamental. Ele é a nossa paz, Ele fez a paz; é algo que Ele traz à existência.


Como Cristo traz à existência a paz

O apóstolo nos diz nestes versículos como Cristo traz à existência a paz. Para que haja paz verdadeira, duas coisas são indispensáveis. É preciso que os homens sejam reconciliados com Deus, e que sejam reconciliados uns com os outros. O apóstolo dá atenção a ambos os problemas. Ele parte da reconciliação dos homens uns com os outros. Ele procede assim, entendo eu, porque o que predominava em sua mente naquela hora era o seguinte: ele estava olhando para a Igreja Cristã e nela via judeus e gentios. Assim ele inicia com o fato concreto da Igreja. Ali, juntos, louvando a Deus, estão homens que antes eram inimigos mordazes. Que foi que os juntou? Paulo começa com essa questão e dela trata nos versículos 14 e 15. Depois, no versículo 16, ele mostra como ambos juntos foram trazidos a Deus e como foi abolida a inimizade entre eles e Deus.


Como Cristo reconcilia os homens uns com os outros?

Como, então, Cristo reconcilia os homens uns com os outros? Como Ele aproxima uns aos outros em amor? Como Ele destrói a inimizade que há entre os homens? Primeiro Paulo o coloca negativa¬mente. Diz ele que Cristo derrubou "a parede de separação que estava no meio", entre nós. Neste ponto permitam-me indicar que a Versão Autorizada, e na verdade a Versão Revista (inglesas), não são tão boas como deviam ser. Sem dúvida, a Versão Revista Padrão é melhor. Eis a tradução da Versão Autorizada e (com ligeira variação apenas) da Versão Revista: "Ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um e derrubou a parede de separação que estava no meio, entre nós, tendo abolido em sua carne a inimizade, até (essa palavra é acrescentada, não está no original, e vem impressa em itálicos), até a lei dos mandamentos". Não está muito bom, e é melhor entendê-lo assim: "Derrubou a parede divisória de hostilidade (ou de inimizade) abolindo a lei dos mandamen¬tos" (tradução semelhante à de Almeida). Ele derrubou a parede de separação (de inimizade) que estava no meio. Como? – abolindo a lei dos mandamentos nas ordenanças. Essa é a melhor maneira de ver isso. Então, que significa? Que é que uniu o judeu e o gentio na Igreja Cristã? A resposta é que o Senhor Jesus Cristo desfez a inimizade. Havia no meio uma espécie de parede de separação entre eles. Havia uma parede divisória entre eles, no meio. O apóstolo está usando aqui, como figura, algo que era característico do templo. No templo vimos que o Pátio dos Gentios era o mais distante. Os gentios não tinham permissão para entrar no Pátio do Povo, dos judeus. Havia uma parede que os separava, uma parede de separação, no meio. De fato, aquele velho templo estava cheio de divisões. Havia, além do Pátio dos Sacerdotes, o Lugar Santo, e depois o "santo dos santos", o Lugar Santíssimo, no qual ninguém tinha a permissão de entrar, exceto o sumo sacerdote, uma vez por ano. Era um lugar cheio de divisões. Mas em Cristo, diz o apóstolo Paulo, as divisões foram arrasadas, foram derrubadas, foram postas abaixo, e o caminho para o Lugar Santíssimo está livre. Contudo aqui ele está particularmente interessado no fato de que a primeira divisão, entre os gentios e os judeus, a inimizade, desapareceu.
Mas por que lhe chama inimizade? Porque, afinal de contas, foi Deus que determinou os detalhes concernentes à construção do templo, foi Deus que deu a lei aos filhos de Israel. E, contudo, Paulo afirma que foi essa lei dos mandamentos contida nas ordenanças que realmente produziu a inimizade. Esse é um ponto muito importante e muito sutil, e é aí que vemos exatamente o que o pecado faz ao homem. Como já vimos, Deus tinha dividido a raça humana em dois grupos. Deus criou para Si um povo especial descendente de Abraão. São os judeus, a comunidade de Israel, o povo de Deus. Os judeus estavam realmente separados de todos os outros povos, e o propósito era que estivessem separados mesmo. Deus lhes deu leis especiais, estas "leis dos manda¬mentos nas ordenanças", como Paulo as descreve. Ele se refere à lei cerimonial, à lei acerca das ofertas queimadas e dos sacrifícios, das ofertas de cereal, e de todas as outras sobre as quais lemos no livro de Levítico e noutros lugares. Deus as determinou. Eram esses os meios pelos quais os filhos de Israel deviam aproximar-se de Deus e ser abençoados por Ele; e, se não os observassem, Deus não Se encontraria com eles, e não os abençoaria. Deus lhes deu a lei. Não deviam comer certos tipos de animais, e assim por diante. Eram, todas elas, leis de Deus, a lei cerimonial, a lei dos mandamentos nas ordenanças, em preceitos. Bem, vocês dirão, se é assim, onde entra a inimizade? Precisamente onde entra o pecado. Deus dividiu o mundo em dois grupos, e deu estes mandamentos. Mas não o fez para criar inimizade; fez isso para que os filhos de Israel dessem testemunho dEle, das Suas santas leis e do caminho da salvação. No entanto, por causa do princípio do pecado, do ego e do egoísmo, eles interpretaram o ato de Deus de tal modo que diziam: nós, e somente nós, somos o povo de Deus, e estes outros são cães, mal chegam a ser seres humanos.


Os judeus tornaram o mandamento de Deus uma parede inter¬mediária de separação; fizeram dele um objeto de ódio e de inimi¬zade

Os judeus tornaram o mandamento de Deus uma parede inter¬mediária de separação; fizeram dele um objeto de ódio e de inimi¬zade. E os gentios olhavam e diziam: quem são esses judeus? Que alegações são essas que eles fazem a seu favor? E assim os odiaram. E o judeu odiava o gentio. Mas não era essa a intenção de Deus. A lei fazia parte da revelação de Deus, fazia parte do plano de salvação feito por Deus. Entretanto o homem em pecado transforma os próprios dons de Deus em causas de inimizade. É assim que as paredes intermediárias entram. Não se trata de um ponto puramente acadêmico. O mundo atual está cheio dessas divisões. Vejam os dons que Deus dá aos homens. Todos eles são manifestações da Sua generosidade e bondade. Ele dá o dom da inteligência e do entendimento, dá perspicácia a certos homens, e eles prosperam e têm sucesso. Ele derrama chuvas de dons destas várias formas. Mas, pergunto, todos os homens se ajoelham e agradecem a Deus os dons da Sua graça aos homens? Será que atribuem com humildade a glória e a honra a Ele e lhe dão graças, sendo que é Ele quem dá "toda a boa dádiva e todo o dom perfeito"? Sabemos muito bem que não o fazem. Eles estão fazendo o que o judeu e o gentio fizeram. O homem dotado de inteligência diz: naturalmente, eu tenho cérebro, tenho entendimento. Vejam aquele outro sujeito, ele não sabe nada. E assim o despreza. E o outro homem olha para ele e diz: quem é ele? Quem ele pensa que é? Inimizade! E tudo por causa dos dons de Deus. Dá-se o mesmo com todos os dons que Deus dá. São dons de Deus, são maravilhosos, e se nós todos compreendêssemos isso e fôssemos humildes, todos nós os desfrutaríamos juntos. O homem sem talento diria: que maravilha esse homem! Que coisa esplêndida Deus tê-lo dotado de tal capacidade! Todavia não é assim; estas coisas levam à inveja e à rivalidade, à inimizade, ao ódio, à malícia, à crueldade, ao escárnio e a tudo o que só serve para envenenar a vida.


Ele (Cristo) aboliu a lei dos mandamentos contida nas ordenanças

Não haverá paz enquanto isso tudo não for derrubado. Cristo, diz o apóstolo aqui, derrubou tudo isso, nesta questão de religião, e o fez uma vez por todas, pois "Ele aboliu a lei dos mandamentos contida nas ordenanças". Foi como Ele fez. O que significa que agora o método de Deus não é mais o de ofertas queimadas, sacrifícios e coisas que só eram peculiares e especiais para o judeu. É mediante Cristo, e somente mediante Cristo. Assim, aquilo que tinha levado à inimizade, à inveja e à rivalidade, foi eliminado por Cristo. A causa da inimizade foi removida. E quando os homens veem isso em Cristo, a inimizade desaparece. O judeu que realmente entende a doutrina de Cristo, não se separa mais em termos da lei cerimonial. Ele diz: isso terminou em Cristo; portanto, agora estou na mesma posição do gentio. E o gentio também vê que não existe mais essa peculiar distinção entre ele e o judeu, e que o caminho é em Cristo, tanto para ele como para o judeu. Assim eles vêm juntos a Deus da mesma maneira, em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e por intermédio dEle.
Vocês veem o ponto ao qual chegamos agora. Cristo derrubou a parede de separação que estava no meio, a inimizade. E aqui está como Ele o fez: "O fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê" (Romanos 10:4). Já não há necessidade do cerimonial e do ritual do judeu; isso foi extinto. Cristo é o cumprimento disso tudo. Aquelas coisas eram apenas tipos que apontavam para Ele. Os homens nunca devem deter-se nelas, elas deveriam levá-los a Ele. Mas Ele pôs um fim nelas. Dessa maneira, em toda esta questão de acesso a Deus, a velha distinção, originariamente feita pelo próprio Deus, foi abolida pelo próprio Deus em Cristo, e agora o caminho está livre, tanto para o gentio como para o judeu, para virem à presença de Deus. Eles poderão vir, não mediante um sacerdócio terreno, humano, não com ofertas e sacrifícios materiais, e sim mediante o único e exclusivo Mediador entre Deus e os homens – o homem Cristo Jesus, que pelo sacrifício da Sua vida e pelo Seu precioso sangue derrubou a parede intermediária de separação. E será somente quando os homens aprenderem essa verdade que serão libertos da inimizade.





* "leit motif": Tema característico que se repete constantemente numa partitura. Em francês no original. Nota do tradutor.

Por: D. M Lloyd Jones

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