sábado, 23 de março de 2013

AS PRIORIDADES DO CRISTÃO




Efésios 6:5-9

Tendo notado os princípios bíblicos envolvidos na obediência do cristão a senhores, empregadores, governos e outros, em seguida consideramos a aplicação prática dos princípios, lembrando que a função da Igreja não é tratar das condições políticas ou sociais ou econômicas como tais. Todavia, neste ponto alguns objetam e dizem: “Mas, que dizer dos profetas do Velho Tes­tamento? Não estavam sempre tratando destes problemas e condições de natureza prática?” A resposta é simples: a nação de Israel também era a Igreja. Naquele tempo não havia divisão entre o Estado e a Igreja; o Estado e a Igreja eram um. De modo que, quando os profetas dirigiam as suas advertências à nação, as estavam dirigindo ao povo de Deus, aos crentes. O que sempre cabe à Igreja é tratar das condições da Igreja e, como naqueles dias a Igreja e o Estado eram um, competia à Igreja tratar de problemas políticos e outros. Mas no momento em que chegamos ao Novo Testamento, encontramos uma situação inteiramente diversa. Aqui a Igreja é separada do mundo e reunida à parte dele. Ela tem sua relação com o Estado, porém já não é unida a ele. É vital que observemos esta distinção. Não há contradição entre o Velho e o Novo Testamentos; a atenção é sempre dada à Igreja, ao povo de Deus, e ao povo de Deus em sua relação com Ele como peregrinos da eternidade.
Portanto, a dedução que tiramos é que, primariamente, a tarefa da Igreja é evangelizar, é levar as pessoas ao conhecimento de Deus. Depois, tendo feito isso, deve ensiná-las a viver sob Deus, como Seu povo. A Igreja não está aqui para reformar o mundo, pois o mundo não pode ser reformado. A ocupação da Igreja é evangelizar, é pregar o evangelho da salvação a homens cegados pelo pecado e que se acham sob o domínio e o poder do diabo. No instante em que a Igreja começa a entrar nos detalhes da política e da economia, está fazendo uma coisa que milita contra a sua missão primordial de evangelizar.
Como um exemplo óbvio, vejam o caso da Igreja e o comunismo. Meu ponto de vista é que não cabe à Igreja cristã denunciar o comunismo. Ela está despendendo muito tempo fazendo isso no presente. É errado por esta razão, que a tarefa primária da Igreja é evangelizar os comunistas, abrir-lhes os olhos, levá-los à convicção de pecado e à conversão. Seja qual for a posição dos homens, ou seus conceitos políticos, sejam eles comunistas ou capitalistas ou qualquer outra coisa, devemos considerá-los a todos como igualmente pecadores. Estão todos perdidos, condenados, e todos precisam ser convertidos, todos precisam nascer de novo. Assim, a Igreja olha o mundo e os seus povos de maneira inteiramente diferente dos não cristãos. Se, pois, a Igreja gastar o seu tempo denunciando o comunismo, estará mais ou menos fechando tão herme­ticamente quanto possível a porta da evangelização entre os comunistas. Diz o comunista: “O seu cristianismo é anticomunista e pró-capitalista; não vou dar ouvidos a essa mensagem”. Daí não podermos evangelizá-lo. Ela deve abster-se de entrar em pormenores, para que a sua missão primordial de evangelização não sofra impedimento e atraso, e para que não suceda que ela mesma feche a porta contra a própria coisa que ela alega estar fazendo. É isso que se deduz em geral do ensino bíblico. Sempre devemos fazer o que o apóstolo faz aqui, o que vimos que o Senhor Jesus fez, e o que todos os escritores e mestres bíblicos fazem, quer do Velho Testamento, quer do Novo.
Quais são, porém, os princípios pormenorizados que deduzimos disso tudo? O primeiro princípio é que, obviamente, o cristianismo não suprime a nossa relação com as condições sociais, políticas e econômicas existentes. É necessário dizer isso porque alguns dos cristãos primitivos erraram neste ponto, e há muitos que ainda erram. Há os que continuam pensando como pensavam alguns cristãos primitivos que, uma vez que um homem se tornava cristão, não estava mais preso à sua esposa, se ela não era cristã. Por isso Paulo teve que escrever o capítulo sete da Primeira Epístola aos Coríntios. Isso estava aconte­cendo nos dois lados. O homem, por exemplo, argumentava desta maneira: “Nós nos casamos quando éramos pagãos e incrédulos, mas agora sou cristão e vejo tudo diferentemente. Minha mulher não é cristã, de modo que não estou mais preso a ela, pois isto seria um obstáculo para a minha vida cristã”. A mesma coisa com a mulher. Os cônjuges convertidos tendiam a abandonar os cônjuges não convertidos. Mas o apóstolo lhes escreveu e lhes disse que não fizessem isso. Havia filhos tendentes a proceder da mesma maneira. Haviam sido convertidos, mas os seus pais continuavam pagãos; então diziam: “Natu­ralmente os nossos pais não mandam mais em nós. Eles não entendem, são pagãos e, portanto, não precisamos sujeitar-nos mais a eles e à sua direção”. Paulo, no entanto, os ensina de outro modo. E assim foi com esta questão dos servos em sua relação com os senhores. De fato, vemos na Segunda Epístola aos Tessalonicenses, no capítulo três, que havia alguns cristãos que até pararam de trabalhar. Argumentavam que agora estavam num novo reino e iam passar o tempo aguardando a volta do Senhor. Por isso, abandonaram as suas tarefas diárias e só ficavam a olhar para os céus e a esperar o aparecimento do Senhor. O apóstolo teve que lhes dizer com toda a franqueza: “se alguém não quer trabalhar, também não coma”. O que estavam fazendo era devido à completa incompreensão do cristianismo.
No caso do relacionamento entre servos e senhores, a tendência era de argumentarem erroneamente, baseados no fato de que somos todos iguais aos olhos de Deus, e de dizerem: “Porventura o apóstolo Paulo não ensina que não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”? Somos todos iguais agora. Já não há diferença entre homens e mulheres; assim, que as mulheres sejam ministras do evangelho e preguem, e que os servos não sejam mais sujeitos aos seus senhores. O fato de sermos cristãos aboliu as relações antigas” Outra vez uma completa incompreensão do cristianismo! O que o apóstolo ensina aí é que não há diferença do ponto de vista da possibilidade de salvação. No entanto, isso não acaba com as ordens da sociedade, não elimina a diferença inerente que há entre um homem e uma mulher, nem estes outros diversos relacionamentos.
A história da Igreja cristã mostra que as pessoas constantemente caem neste erro. A seita conhecida como Ana batismo, que surgiu no século dezesseis, fez isso, e dizia que os cristãos nada deviam ter com o Estado. Procuravam isolar-se, segregar-se do mundo em todos os sentidos. Ainda há gente que tem a propensão de seguir nesse rumo; alguns acham que é errado o cristão pagar taxas e tarifas e, para outros, é um erro o cristão participar da política. Não votam nas eleições, e assim por diante. Ora, isso tudo decorre de não levarmos em conta este primeiro princípio - que o fato de nos termos tornado cristãos não dissolve nem elimina a nossa relação com o Estado e com as condições sociais, políticas e econômicas.
Aqui o apóstolo chega ao ponto de dizer que o fato de nos fazermos cristãos não põe fim à escravidão automaticamente. Ele não diz aos escravos que, uma vez que se tornaram cristãos, as condições anteriores são abolidas; na verdade ele diz exatamente o oposto. Os escravos devem continuar como antes, mas com novo ponto de vista e com uma nova atitude que aqui ele ensina. Sua Epístola a Filemom ensina exatamente a mesma coisa. Entretanto, talvez a mais clara exposição disso tudo seja a que se encontra em 1 Co 7:20 a 24: “Cada um fique na vocação em que foi chamado. Foste chamado sendo servo (escravo)? Não te dê cuidado; e, se ainda podes ser livre, aproveita a ocasião. Porque o que é chamado pelo Senhor sendo servo (escravo), é liberto do Senhor; e da mesma maneira também o que é chamado sendo livre, servo (escravo) é de Cristo. Fostes comparados por bom preço; não vos façais servos (escravos) dos homens. Irmãos, cada um fique diante de Deus no estado em que foi chamado”. Essa é a declaração clássica sobre esta questão. “Foste chamado sendo servo? Não te dê cuidado.” Não faça disso a coisa mais importante da sua vida; não fique aflito por isso; não deixe que isso absorva toda a sua atenção; não permita que isso ocupe o centro do seu pensamento. “Não te dê cuidado; e, se ainda podes ser livre, aproveita a ocasião.”
O segundo princípio parece espantoso, de início. O cristianismo não somente não muda a nossa relação com estas condições, nem sequer condena coisas como a escravidão diretamente como sendo pecaminosas. Isso tem sido uma grande pedra de tropeço para muita gente, e particularmente durante este século. Mas o que nos compete é expor as Escrituras. As pessoas argumentam no sentido de que a escravidão é patentemente um mal e um pecado e, portanto, o cristianismo deve necessariamente denunciá-la. Elas argumentam do mesmo modo acerca de várias outras coisas no presente - os conflitos e a guerra, por exemplo. Dizem elas: “Mas é óbvio, toda gente pode ver que é um mal; até o não cristão pode ver isso; todo aquele que tem senso de bondade e de justiça, e noção da dignidade do homem, só pode ver logo que isso é completamente errado”. Todavia, o fato puro e simples é que a Bíblia não condena a escravatura desse modo tão direto. Se ela tivesse a intenção de fazê-lo, certamente Paulo o teria feito aqui; contudo não o faz. Escrevendo a Filemon, ele não faz isso, e não o faz em nenhum outro lugar. O Senhor Jesus também não o fez.
Esta é uma coisa que o homem natural simplesmente não pode entender, de jeito nenhum; e os racionalistas e humanistas de hoje - estes críticos do cristianismo - pensam ter um argumento irrespondível aqui. Naturalmente, a simples resposta a eles é que nunca nem sequer começaram a ver os dois grandes princípios normativos que já firmamos. Não conseguem ver que o que importa fundamentalmente é a relação do homem com Deus, e que no momento em que o homem enxerga isso, tudo mais, a escravidão inclusive, passa a ser diferente para ele. Embora continue escravo, não vê isso como via antes; agora ele é um “liberto de Cristo”. É porque estes humanistas são cegos para o sobrenatural, para o espiritual, porque não enxergam nada senão este mundo, nada senão esta vida, que todo o seu pensamento é pervertido. O pensamento cristão é diverso do pensamento natural em todos os pontos. É por isso que, para mim, é trágico ver atualmente homens que se dizem cristãos se juntarem a estes racionalistas não cristãos e participarem das suas atividades. A abordagem toda, todo o modo de pensar é inteiramente diverso. Fazemos notar, então, que o cristianismo nem mesmo condena diretamente a escravidão como pecaminosa; e essa é, sem dúvida, a razão por que a escravidão persistiu durante muitos séculos.
Partindo para o nosso terceiro princípio, observamos que, conquanto o cristianismo não condene a escravidão, tampouco a justifica. Aqui, mais uma vez, tem havido muito mal-entendido. Tem havido cristãos que julgam, que o cristianismo é apenas uma justificativa do “statu quo”. Espanta-me a cegueira de pessoas que presentemente estão caindo na armadilha católica romana. O catolicismo romano está combatendo o comunismo, e está convidando os protestantes e todos os que usam o nome de cristãos, para se juntarem a ele nessa empresa. Os que aceitam o convite não vêem que o catolicismo romano está mais interessado em defender a sua modalidade particular de totalitarismo. É simplesmente o caso de um sistema totalitário contra outro, uma defesa do “statu quo”. O cristianismo nunca faz isso. Ele não condena a escravidão, mas não a desculpa nem a justifica. Então, qual é a sua atitude? Já expliquei: o cristianismo está interessado é no modo como o escravo se porta para com o seu senhor, e como o senhor se porta para com o seu escravo. Ele não trata diretamente da questão da escravatura propriamente dita.
O problema hoje é que os líderes da Igreja cristã estão despendendo muito do seu tempo para tratar destas coisas diretamente. Estão sempre pregando sobre elas, enviando mensagens e protestos aos governos, tomando parte em marchas. Ação direta! A Bíblia nunca faz isso; o que lhe interessa, e muito, é como os cristãos dos dois lados do problema e da situação se comportam.
Este ensino é de tão vital importância que devo colocá-lo ainda de outra maneira. O cristianismo não está interessado em perdoar práticas como a escravidão; não faz defesa do “statu quo”. Ouço falar tanto hoje sobre a defesa da civilização ocidental contra várias formas de agressão! Está tudo errado! Como cristão, não estou interessado primordialmente na civilização ocidental, estou interessado no reino de Deus; e estou desejoso de que os homens atrás da Cortina de Ferro sejam salvos, bem como os que se acham deste lado dela. Não devemos tomar uma posição de antagonismo para com os que desejamos conquistar para Cristo. Se passarmos todo o nosso tempo falando contra eles, nunca os conquistaremos. É por isso que eu nunca prego o “Sermão de Temperança”, assim chamado - quero ver os beberrões convertidos. Nossa função não é denunciar a bebida; é levar o pobre ébrio a crer no Senhor Jesus Cristo; porque somente isso poderá libertá-lo. Constantemente, porém, a Igreja se engana neste ensino e entra nas minúcias destas coisas.
Outro modo de argumentar sobre isso é dizer que não cabe à Igreja apregoar o divino direito dos reis. Houve tempo em que a Igreja fazia isso. Tiago Primeiro era muito astuto. Ele dizia: “Nenhum bispo, nenhum rei!” Assim, ele e a igreja episcopal permaneceram unidos, e a igreja se tornou uma defesa e um baluarte em prol do divino direito dos reis. Agindo assim, ela abrigou sua posição e foi se tornando desleal à sua doutrina. A missão da Igreja não é defender algum sistema particular - político, social ou econômico. O cristian­ismo, digo e repito, embora não condene a escravidão, não a desculpa. Sua atitude é destacada, visando a princípios e neles interessada.
Isso leva ao quarto princípio. O interesse da Bíblia, o interesse do cristianismo, relaciona-se com o modo como o cristão deve reagir a estas coisas e como deve viver num mundo como este. Essa é a essência do ensino, e aqui a temos. Paulo, quando passa a falar dos “servos e senhores”, não se põe a dar suas opiniões como certos cristãos fazem sobre a questão da escravatura. “Vós, servos”, diz ele, “obedecei a vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a Cristo; não servindo à vista...” Noutras palavras, seu único interesse é quanto a se conduzirem eles como cristãos naquela situação. Igualmente com os senhores. “E vocês, senhores, façam o mesmo para com eles.” Não lhes fala que renunciem aos seus escravos; em vez disso, diz: “Não os ameacem, não sejam maldosos, não sejam cruéis com eles”, - “sabendo também que o Senhor deles e vosso está no céu, e que para com ele não há acepção de pessoas”.
Temos o mesmo ensinamento na Primeira Epístola de Pedro, capítulo 2: “Vós, servos, sujeitai-vos com todo o temor aos senhores” - e, observem - “não somente aos bons e cortezes, mas também aos maus”. Ele não diz aos escravos que se levantem e se rebelem contra os senhores. A Bíblia nunca faz isso. Mas está muito interessada em asseverar que o cristão jamais deverá abusar da sua posição - “não tendo a liberdade por cobertura da malícia”. Esse é o perigo, que o cristão venha a usar sua posição cristã para acobertar a malícia que há nos seu coração. Isso tem acontecido com freqüência; em nome do cristianismo têm sido feitas coisas que jamais deveriam ser feitas. E isso faz inenarrável dano ao cristianismo. Tem acontecido de ambos os lados. É sempre porque os homens e os senhores esquecem que o seu dever é para com Deus, seu Senhor que está no céu, que surgem os problemas.
Facilmente poderíamos alongar-nos sobre estes problemas. Hoje há muitos que dizem que as classes trabalhadoras, assim chamadas, estão fora da Igreja porque a Igreja da época vitoriana era, em grande parte, uma Igreja de senhores. Vá às regiões mineiras de qualquer parte da Grã-Bretanha, e sistema­ticamente ouvirá isso. Farão você lembrar-se de que, no século passado, com muitíssima freqüência, o chefe no emprego e no templo era o mesmo, o líder dos oficiais da Igreja geralmente era o gerente das obras. Dizem aqueles operários que foi por isso que se revoltaram contra o cristianismo e contra a Igreja. Isso com certeza aconteceu em grande medida na Rússia. A monarquia na Rússia estava sob a forte influência da Igreja Ortodoxa Russa, com aquele mau frade Rasputin dominado a família real. Assim, o povo russo identificava com o cristianismo esse horrível abuso; e jogou fora o que pensava que era o cristianismo. Na realidade não estava fazendo nada disso; estava rejeitando uma horrível perversão do cristianismo, que absolutamente não era cristianismo. No entanto, isso tem acontecido muitas e muitas vezes; tem acontecido dos dois lados (dos servos e dos senhores); e isso em grande parte porque ambos não praticaram e não entenderam o princípio que o apóstolo enuncia aqui. O que nos compete primordialmente é relacionar-nos corretamente com as posições em que nos achamos.
Em Romanos capítulo 13 encontramos exatamente o mesmo ensino. Ali o apóstolo diz aos cristãos que se sujeitem “às potestades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação”. Estas palavras foram escritas a pessoas que estavam debaixo do maligno poder do imperador Nero. Mas é o que cabe ao cristão fazer. Seu interesse principal é ser servo de Deus e de Cristo. Seja qual for a sua posição, sejam quais forem as circunstâncias, seja ele senhor ou servo, rei ou súdito, nada disso importa. Todos devem sujeitar-se jun­tamente, e devem cuidar para, por todos os meios, comportar-se como pessoas cristãs. Não devem preocupar-se primariamente com as situações e condições como tais; sua preocupação como “peregrinos da eternidade”, como “estrangei­ros e peregrinos”, deve ser a de serem fiéis ao seu Senhor e se prepararem para o seu lar eterno.
Passo agora ao quinto e último princípio. Alguém poderá perguntar: “Pois bem, que dizer de melhorar as condições? Não está você, na realidade, tomando apenas e afinal de contas uma defesa desse “statu quo”? Você afirma que não está fazendo isso, mas com efeito é o que está fazendo. Diz você que o cristão não deve ficar preocupado com as condições, porém que deve concentrar-se em ter um comportamento semelhante ao de Cristo nas condições existentes”. A resposta a esta questão é muito simples. Não cabe à Igreja preocupar-se em melhorar as condições; o que lhe compete sempre é propor os princípios bíblicos que venho expondo. Jamais deverá atacar diretamente as circunstâncias e as condições. Entretanto, ao mesmo tempo, não significa que o cristão individual, como cidadão de um país, não deva preocupar-se em melhorar as condições. Aí, parece-me, está a linha divisória. O cristão individual nunca deve agir como indivíduo isoladamente. Mas isso não significa que, como cidadão do país a que pertence, não tenha o direito de tomar parte no melhoramento das circunstâncias e condições em que ele e outros vivem.
Funciona da seguinte maneira: a mensagem cristã visa, antes de tudo, produzir cristãos. Difunde a pregação do evangelho, convence os homens do pecado, chama-os para o sangue de Jesus, trá-los a esta Palavra pela qual eles podem nascer de novo mediante o poder do Espírito, enfim, transforma-os. Depois, tendo-os transformado desse modo, prossegue, ensinando-lhes estes grandes princípios. Essa é a direta missão e atividade própria da Igreja. Todavia, à medida que realiza isso, a Igreja faz indiretamente mais uma coisa; obviamente influencia a personalidade completa dessas pessoas - sua mente, seu pensamento, seu entendimento. E no momento em que isso começa a acontecer com os homens, eles passam a ver as coisas de maneira diferente e começam a aplicar seu pensamento ao viver diário.
Pode-se achar uma ilustração do que digo, por exemplo, no Despertamento Evangélico ocorrido há duzentos anos. Antes desse tempo, a maioria do povo comum da Inglaterra era ignorante, analfabeta e levava uma vida de pecado e sordidez. Os fatos podem ser encontrados nos livros de história seculares. Havia poucas escolas; o povo estava numa condição de ignorância, analfabetismo, pecado grosseiro e vil. Por que aquela situação se tornou muito diferente no século passado, e mais diferente ainda neste século? Foi porque a Igreja cristã dirigiu uma grande campanha social e política? Não é essa a explicação. Sempre houve líderes individuais da Igreja que tentavam fazer tais coisas; mais isso nunca levou a nada de valor. A mudança foi produzida pela obra de evangelização inflamada e apaixonada de George Whitefield, dos Wesley e de outros, e a situação se transformou. Qual era a mensagem deles? O que Whitefield e os Wesley pregavam às multidões populares, por exemplo aos mineiros das vizinhanças de Bristol? Falavam das condições sociais, de salários e das horas de trabalho? Acaso os incentivavam para a agitação e protesto contra as suas misérias, e para se levantarem em rebelião? A resposta se acha nos seus diários. Whitefield pregava uma mensagem que levava os homens a verem que eram pecadores nas mãos de um Deus irado que, não obstante, providenciara um meio para obter-se perdão. Pregava-lhes sobre as suas almas, não sobre os seus corpos, não sobre as circunstâncias e condições em que viviam. Na primeira vez que João Wesley pregou nas ruas do distrito mais pobre de Newcastle-on-Tyne, seu texto foi o de Isaías 53: “Ele foi ferido pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniqüidades: o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados”. A mesma coisa acontecia em toda parte. Os evangelistas sempre tratavam os homens como homens, e o resultado da sua pregação era que as pessoas mudaram e eram convertidas. Tomaram-se cristãs, nasceram de novo. Com que resultado? Os convertidos começaram a usar suas mentes. Não as usavam antes; viviam para beber, jogar e entregar-se a esportes cruéis como a briga de galos. Agora, porém, tendo sido despertados espiritualmente, a personalidade toda se despertou. Des­cobriram que possuíam mentes. A primeira coisa que desejaram fazer foi ler a Bíblia, mas muitos não sabiam ler, e pediram que se lhes ensinasse a ler; não para poderem estabelecer sociedades e agremiações políticas, e sim para pode­rem ler a Bíblia. E assim os ensinaram a ler. Dessa maneira foram despertados e iluminados, e começaram a compreender a verdade sobre o homem, e sobre a personalidade e a dignidade do homem. E tendo avançado tanto, foram mais longe ainda; começaram a examinar as circunstâncias e condições em que viviam. Começaram a inquirir se essas condições eram boas, justas e retas e, chegando à conclusão de que não eram, puseram-se a tomar medidas para mudá-las.
Isso era certo e bom; e inteiramente de acordo com o ensino escriturístico. Esse ensino não denuncia a escravidão, e não a desculpa. Não espera que os homens se levantem e a mudem; tampouco mantém simplesmente o “statu quo”. Cuida primeiro do homem, e depois, sob a influência deste ensino, e com este novo entendimento, o próprio homem começa a examinar a situação e lidar com ela.
Podemos resumir isso da seguinte maneira: a Igreja não manda fazer nenhuma dessas mudanças; nunca mandou. Não há uma palavra na Bíblia que diga aos homens que suprimam a escravidão; e, contudo, sabemos que foram homens cristãos que finalmente fizeram isso acontecer. E isso está exatamente de acordo com o ensino bíblico. Não há mandamento para fazê-lo; a Bíblia não trata dessas coisas diretamente, todavia, quando os homens se tornam cristãos, começam a pensar, e pensam sobre os dois lados da questão. Já dei um exemplo de como os operários começaram a pensar. Mas, por outro lado, vejam William Wilberforce. Era rico, nascido no regaço do luxo. Por que passou a preocupar-se com a questão da escravatura? Há somente uma resposta para essa pergunta: foi sua conversão. William passou pela experiência de uma conversão tão radical como a dos mineiros beberrões das cercanias de Bristol. Ele foi inteiramente transformado e, de almofadinha da sociedade, veio a ser um grande reformador, e conforme a sua mente ia se tornando cada vez mais cristã, foi examinando a questão da escravatura e viu que esta era um mal. Não porque tivesse achado algum mandamento especial na Bíblia, porém devido ao seu modo de pensar em geral, e da sua perspectiva cristã em geral! A mesma coisa se aplica ao Conde de Shaftesbury, principal responsável pelos Atos sobre a Indústria, ou seja, pelas leis trabalhistas inglesas do século passado. Era outro homem, aristocrata dos aristrocatas, nascido na riqueza e no luxo, alguém que experimentou uma conversão bíblica. No entanto, posto que sua mente fora renovada em Cristo, ele começou a ver tudo diferentemente e veio a preocupar-se com as condições predominantes nas fábricas e nas minas. A mesma coisa se pode dizer do doutor Bernardo, fundador do Lar das Crianças Desamparadas.
E sempre aconteceu assim! Não é tarefa da Igreja tratar desses problemas diretamente. A tragédia hoje é que, enquanto a Igreja fica falando desses problemas particulares e tratando diretamente de política e das condições econômicas e sociais, não estão sendo produzido cristãos, as condições estão piorando e os problemas estão se avolumando. É quando a Igreja produz cristãos que ela muda as condições, mas sempre indiretamente.
Darei outra ilustração deste mesmo ponto. Li num artigo muito recente uma coisa que já soubera, uma coisa que de algum modo me havia fugido da memória. Referia-se ao grande Charles Simeon, um clérigo anglicano que serviu em Cambridge de 1782 a 1836, e que foi uma das maiores influências na igreja anglicana até por volta de 1860, e na verdade além dessa data. Foi o seguinte fato que o artigo me fez recordar. Charles Simeon esteve pregando em Cambridge durante todo o período das guerras da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas, de 1790 a 1815,e durante todo o transcurso desses vinte e cinco anos, a despeito de todas as crises, alarmes e temores, Charles Simeon não pregou nem uma só vez sobre as guerras. Nem uma só ocasião! Foi amarga e severamente criticado por isso. Por que não tratou desses acontecimentos? Por que não dedicou tempo aos fatos correntes e não tratou deles, como se supõe que um clérigo deve fazer? Havia muitos outros que estavam fazendo isso, mas já faz tempo que os seus nomes foram esquecidos. Esses pregadores, de sermões tópicos podem ter sido populares em seu tempo, mas ninguém sabe nada a respeito deles hoje - nem mesmo os seus nomes. Não tiveram efeito sobre as condições da sua época; não fizeram a mínima diferença para Napoleão, nem para as guerras, nem para coisa nenhuma; porém no seu tempo os seus nomes estavam nos jornais e nas manchetes! Mas isso não levou a nada; foi fôlego perdido. O pregador anglicano que realmente influenciou a vida da nação foi Charles Simeon; e o fez pelo método bíblico, isto é indiretamente. Ele o fez pregando o evangelho e transformando homens.
A Igreja não pode mudar as condições; e não foi destinada a mudá-las. No momento em que tenta fazer isso, de várias maneiras fecha a porta da oportunidade evangelística. Se eu atacar o comunismo, os comunistas ficam logo na defensiva, e não se dispõem a ouvir o meu evangelho; nem sequer lhe dão ouvidos. Tenho que evitar isso. Não devo lançar um ataque direto a nenhuma destas coisas, quaisquer que sejam. Minha preocupação como prega­dor do evangelho é com as almas dos homens, minha função é produzir cristãos; e quanto maior for o número de cristãos, maior será o volume de pensamento cristão. Aos cristãos individuais compete entrar no Parlamento, como fez Wilberforce, ou falar na Câmara dos Lordes, como fez o Conde de Shaftesbury, ou candidatar-se à eleição num conselho ou câmara local, e em geral atuar como bons cidadãos. Vocês são cidadãos - procedam de acordo. Não permitam que estas atividades absorvam todo o seu tempo; não façam delas a coisa principal da sua vida. Muitas vezes tem sido esse o erro. Acredito que, em grande parte, as condições das nossas igrejas hoje se devem a esse fato. Sou suficientemente idoso para lembrar o tempo em que, neste país, a principal diferença entre a igreja anglicana e a capela não-conformista era a diferença entre o torysmo e o liberalismo. O torysmo defendia o “statu quo” e, no outro lado, o não-conformismo apresentava reformas. Quanto ao não-conformismo, a época era dos pregadores políticos. Como eu já disse, o pregador político é tão repreensível como os bispos e arcebispos que muitas vezes têm sido apenas capelães do palácio. Juntos eles têm, com freqüência, desviado a atenção do povo para longe da mensagem da Palavra de Deus. Certamente não conseguiram produzir cristãos; e é porque existem tão poucos cristãos no mundo atual que prevalece a impiedade.
Temos, pois, até aqui considerado os cinco princípios bíblicos que regu­lam as relações de governantes e governados, senhores e servos, empregadores e empregados. Devemos ir adiante para descobrir como as Escrituras nos dão mais orientação sobre a maneira de pôr em execução estes cinco princípios. Precisamos dessa orientação e, graças a Deus, ela se acha aqui para nós. Todavia, se omitirmos a ênfase principal, os princípios centrais, qualquer outra consideração adicional será pura perda de tempo. A questão que eu gostaria de levantar é: qual é o seu interesse obcecante? São as condições sociais e políticas em que você se encontra, ou é a sua relação com Deus e com a eternidade? Se estiver obcecado por suas condições atuais; se estiver agitado, irritado e amargado por causa delas, e simplesmente estiver condenando as pessoas de um lado e do outro, você já está fora da posição do Novo Testamento. O interesse ardente do cristão é sua relação com Deus, com o céu e com a eternidade e, sendo assim, considera secundárias todas as outras questões. Ele as observa fria e serenamente, compreendendo que a sua primeira função é relacionar-se como cristão com tudo o que a vida envolve. Ele é diferente dos não cristãos. E somente quando o seu espírito está certo desta forma, que ele começa a considerar se, como cidadão que vive neste mundo (mas que não pertence a este mundo), deverá tentar mudar ou melhorar ou conservar isto ou aquilo - seja qual for o seu ponto de vista. Mas o interesse final, o interesse vital é sempre este: “Meu Senhor está no céu”; seja eu servo ou senhor, seja eu empregado ou empregador, será que estou me sujeitando ao Senhor e vivendo para a Sua glória?

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