Efésios 6:5-9
Tendo notado os princípios bíblicos envolvidos na
obediência do cristão a senhores, empregadores, governos e outros, em seguida consideramos a aplicação prática dos
princípios, lembrando que a função da
Igreja não é tratar das condições políticas ou sociais ou econômicas como
tais. Todavia, neste ponto alguns objetam e dizem: “Mas, que dizer dos profetas do Velho Testamento? Não estavam sempre tratando destes problemas e condições de natureza prática?” A resposta é simples: a nação de Israel também era a Igreja.
Naquele tempo não havia divisão entre o Estado e a Igreja; o Estado e a Igreja eram um. De modo que, quando os profetas
dirigiam as suas advertências à nação, as estavam dirigindo
ao povo de Deus, aos crentes. O que sempre cabe à Igreja é tratar das condições
da Igreja e, como naqueles dias a Igreja e o Estado eram um, competia à Igreja tratar de problemas
políticos e outros. Mas no momento em que chegamos ao Novo Testamento,
encontramos uma situação inteiramente diversa. Aqui a Igreja é separada do mundo e reunida à parte dele. Ela tem sua relação com o Estado, porém já
não é unida a ele. É vital que
observemos esta distinção. Não há contradição entre o Velho e o Novo
Testamentos; a atenção é sempre dada à Igreja, ao povo de Deus, e ao povo de Deus em sua relação com Ele como
peregrinos da eternidade.
Portanto, a dedução que tiramos é que,
primariamente, a tarefa da Igreja é evangelizar, é levar as
pessoas ao conhecimento de Deus. Depois, tendo feito isso, deve ensiná-las a viver sob Deus, como Seu
povo. A Igreja não está aqui para reformar
o mundo, pois o mundo não pode ser reformado. A ocupação da Igreja é evangelizar, é pregar o
evangelho da salvação a homens cegados pelo pecado e que se acham sob o
domínio e o poder do diabo. No instante em que a Igreja começa a entrar nos
detalhes da política e da economia, está fazendo uma coisa que milita contra a sua missão primordial de
evangelizar.
Como um exemplo óbvio, vejam o caso da Igreja e o
comunismo. Meu ponto de vista é que não cabe à Igreja cristã denunciar o
comunismo. Ela está despendendo muito tempo fazendo isso no presente. É errado
por esta razão, que a tarefa primária da Igreja é evangelizar os comunistas, abrir-lhes os olhos, levá-los à convicção de pecado e à conversão. Seja qual for a posição dos
homens, ou seus conceitos políticos, sejam eles comunistas ou capitalistas ou
qualquer outra coisa, devemos considerá-los a todos como igualmente pecadores.
Estão todos perdidos, condenados, e todos precisam ser convertidos, todos
precisam nascer de novo. Assim, a Igreja olha o mundo e os seus povos de
maneira inteiramente diferente dos não cristãos. Se, pois, a Igreja gastar o seu tempo denunciando o
comunismo, estará mais ou menos fechando tão hermeticamente quanto
possível a porta da evangelização entre os comunistas. Diz o comunista: “O seu cristianismo é anticomunista e
pró-capitalista; não vou dar ouvidos a essa mensagem”. Daí não podermos evangelizá-lo. Ela deve
abster-se de entrar em pormenores, para que a sua missão primordial de evangelização não sofra impedimento e atraso, e para que não suceda que ela mesma
feche a porta contra a própria coisa que ela alega estar fazendo. É isso que se
deduz em geral do ensino bíblico. Sempre devemos fazer o que o apóstolo faz
aqui, o que vimos que o Senhor Jesus fez, e o que todos os escritores e mestres
bíblicos fazem, quer do Velho Testamento, quer do Novo.
Quais são, porém, os princípios pormenorizados que deduzimos disso tudo?
O primeiro princípio é que, obviamente,
o cristianismo não suprime a nossa relação com as condições sociais, políticas
e econômicas existentes. É necessário dizer isso porque alguns dos cristãos
primitivos erraram neste ponto, e há muitos que ainda erram. Há os que
continuam pensando como pensavam alguns cristãos primitivos que, uma vez que um
homem se tornava cristão, não estava mais preso à sua esposa, se ela não era
cristã. Por isso Paulo teve que escrever o capítulo sete da Primeira Epístola
aos Coríntios. Isso estava acontecendo nos dois lados. O homem, por exemplo,
argumentava desta maneira: “Nós nos
casamos quando éramos pagãos e incrédulos, mas agora sou cristão e vejo tudo
diferentemente. Minha mulher não é cristã, de modo que não estou mais preso a
ela, pois isto seria um obstáculo para a minha vida cristã”. A mesma coisa
com a mulher. Os cônjuges convertidos tendiam a abandonar os cônjuges não
convertidos. Mas o apóstolo lhes escreveu e lhes disse que não fizessem isso.
Havia filhos tendentes a proceder da mesma maneira. Haviam sido convertidos,
mas os seus pais continuavam pagãos; então diziam: “Naturalmente os nossos pais não mandam mais em nós. Eles não entendem,
são pagãos e, portanto, não precisamos sujeitar-nos mais a eles e à sua direção”.
Paulo, no entanto, os ensina de outro modo. E assim foi com esta questão dos servos em sua relação com os senhores.
De fato, vemos na Segunda Epístola aos Tessalonicenses, no capítulo três, que
havia alguns cristãos que até pararam de
trabalhar. Argumentavam que agora estavam num novo reino e iam
passar o tempo aguardando a volta do Senhor. Por isso, abandonaram as suas
tarefas diárias e só ficavam a olhar para os céus e a esperar o aparecimento do
Senhor. O apóstolo teve que lhes dizer com toda a franqueza: “se alguém não quer trabalhar, também não
coma”. O que estavam fazendo era devido à completa incompreensão do cristianismo.
No caso do relacionamento entre servos e senhores, a tendência era de argumentarem erroneamente, baseados no
fato de que somos todos iguais aos olhos de Deus, e de dizerem: “Porventura o apóstolo Paulo não ensina que não
há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque
todos vós sois um em Cristo Jesus”? Somos
todos iguais agora. Já não há diferença entre homens e mulheres; assim, que as
mulheres sejam ministras do evangelho e preguem, e que os servos não sejam mais
sujeitos aos seus senhores. O fato de sermos cristãos aboliu as relações
antigas” Outra vez uma completa incompreensão do cristianismo! O que o
apóstolo ensina aí é que não há diferença do ponto de vista da possibilidade de salvação. No entanto,
isso não acaba com as ordens da sociedade,
não elimina a diferença inerente que há entre um homem e uma mulher, nem estes
outros diversos relacionamentos.
A história da Igreja cristã mostra que as pessoas
constantemente caem neste erro. A seita conhecida como Ana batismo, que
surgiu no século dezesseis, fez isso, e dizia que os cristãos nada deviam ter
com o Estado. Procuravam isolar-se, segregar-se do mundo em todos os
sentidos. Ainda há gente que tem a propensão de seguir nesse rumo; alguns acham
que é errado o cristão pagar taxas e
tarifas e, para outros, é um erro o cristão participar da política. Não votam
nas eleições, e assim por diante. Ora, isso tudo decorre de não levarmos em
conta este primeiro princípio - que o fato de nos termos tornado cristãos não dissolve nem elimina a nossa relação
com o Estado e com as condições sociais,
políticas e econômicas.
Aqui o apóstolo chega ao ponto de dizer que o
fato de nos fazermos cristãos não põe fim à escravidão automaticamente. Ele não diz aos escravos que, uma vez que se tornaram
cristãos, as condições anteriores são abolidas; na verdade ele diz exatamente o
oposto. Os escravos devem continuar como antes, mas com novo ponto de vista e
com uma nova atitude que aqui ele ensina. Sua Epístola a Filemom ensina
exatamente a mesma coisa. Entretanto, talvez a mais clara exposição disso tudo
seja a que se encontra em 1 Co 7:20 a 24: “Cada
um fique na vocação em que foi chamado. Foste chamado sendo servo (escravo)?
Não te dê cuidado; e, se ainda podes ser livre, aproveita a ocasião. Porque o
que é chamado pelo Senhor sendo servo (escravo), é liberto do Senhor; e da
mesma maneira também o que é chamado sendo livre, servo (escravo) é de Cristo.
Fostes comparados por bom preço; não vos façais servos (escravos) dos homens.
Irmãos, cada um fique diante de Deus no estado em que foi chamado”. Essa é
a declaração clássica sobre esta questão. “Foste
chamado sendo servo? Não te dê cuidado.” Não faça disso a coisa mais
importante da sua vida; não fique aflito por isso; não deixe que isso absorva
toda a sua atenção; não permita que isso ocupe o centro do seu pensamento. “Não te dê cuidado; e, se ainda podes ser
livre, aproveita a ocasião.”
O segundo
princípio parece espantoso, de início. O cristianismo não somente não muda
a nossa relação com estas condições, nem sequer condena coisas como a
escravidão diretamente como sendo pecaminosas.
Isso tem sido uma grande pedra de tropeço para muita gente, e particularmente
durante este século. Mas o que nos compete é expor as Escrituras. As pessoas
argumentam no sentido de que a escravidão é patentemente um mal e um pecado e,
portanto, o cristianismo deve necessariamente denunciá-la. Elas argumentam do
mesmo modo acerca de várias outras coisas no presente - os conflitos e a guerra, por
exemplo. Dizem elas: “Mas é óbvio, toda
gente pode ver que é um mal; até o não cristão pode ver isso; todo aquele que
tem senso de bondade e de justiça, e noção da dignidade do homem, só pode ver
logo que isso é completamente errado”.
Todavia, o fato puro e simples é que a Bíblia não condena a escravatura desse
modo tão direto. Se ela tivesse a intenção de fazê-lo, certamente Paulo o teria
feito aqui; contudo não o faz. Escrevendo a Filemon, ele não faz isso, e não o
faz em nenhum outro lugar. O Senhor Jesus também não o fez.
Esta é uma coisa que o homem natural simplesmente
não pode entender, de jeito nenhum; e os racionalistas
e humanistas de hoje - estes críticos
do cristianismo - pensam ter um argumento irrespondível aqui. Naturalmente, a
simples resposta a eles é que nunca nem sequer começaram a ver os dois grandes
princípios normativos que já firmamos. Não conseguem ver que o que importa
fundamentalmente é a relação do homem com
Deus, e que no momento em que o homem enxerga
isso, tudo mais, a escravidão inclusive, passa a ser diferente para ele.
Embora continue escravo, não vê isso como via antes; agora ele é um “liberto de Cristo”. É porque estes
humanistas são cegos para o sobrenatural, para o espiritual, porque não
enxergam nada senão este mundo, nada senão esta vida, que todo o seu pensamento
é pervertido. O pensamento cristão é diverso do pensamento natural em todos os
pontos. É por isso que, para mim, é trágico ver atualmente homens que se dizem
cristãos se juntarem a estes racionalistas não cristãos e participarem das suas
atividades. A abordagem toda, todo o modo de pensar é inteiramente diverso.
Fazemos notar, então, que o cristianismo nem mesmo condena diretamente a
escravidão como pecaminosa; e essa é, sem dúvida, a razão por que a escravidão
persistiu durante muitos séculos.
Partindo para o nosso terceiro princípio, observamos que, conquanto o cristianismo não
condene a escravidão, tampouco a
justifica. Aqui, mais uma vez, tem havido muito mal-entendido. Tem havido
cristãos que julgam, que o cristianismo é apenas uma justificativa do “statu quo”. Espanta-me a cegueira de
pessoas que presentemente estão caindo na armadilha católica romana. O
catolicismo romano está combatendo o comunismo, e está convidando os
protestantes e todos os que usam o nome de cristãos, para se juntarem a ele
nessa empresa. Os que aceitam o
convite não vêem que o catolicismo romano está mais interessado em defender a
sua modalidade particular de
totalitarismo. É simplesmente o caso de um sistema totalitário contra outro,
uma defesa do “statu quo”. O
cristianismo nunca faz isso. Ele não condena a escravidão, mas não a desculpa nem a justifica. Então, qual é a sua atitude? Já expliquei: o
cristianismo está interessado é no modo como o escravo se porta para com o seu
senhor, e como o senhor se porta para com o seu escravo. Ele não trata
diretamente da questão da escravatura propriamente dita.
O problema hoje é que os líderes da Igreja cristã
estão despendendo muito do seu tempo para tratar destas coisas diretamente.
Estão sempre pregando sobre elas, enviando mensagens e protestos aos governos,
tomando parte em marchas. Ação direta! A Bíblia nunca faz isso; o que lhe
interessa, e muito, é como os cristãos dos dois lados do problema e da situação
se comportam.
Este ensino é de tão vital importância que devo
colocá-lo ainda de outra maneira. O cristianismo não está interessado em
perdoar práticas como a escravidão; não faz defesa do “statu quo”. Ouço falar tanto hoje sobre a defesa da civilização
ocidental contra várias formas de agressão! Está tudo errado! Como cristão, não
estou interessado primordialmente na
civilização ocidental, estou interessado
no reino de Deus; e estou desejoso de que os homens atrás da Cortina de Ferro sejam salvos, bem como os que se acham deste lado dela. Não
devemos tomar uma posição de antagonismo para com os que desejamos conquistar
para Cristo. Se passarmos todo o nosso tempo falando contra eles, nunca os
conquistaremos. É por isso que eu nunca prego o “Sermão de Temperança”, assim chamado - quero ver os beberrões convertidos. Nossa função não
é denunciar a bebida; é levar o pobre ébrio a crer no Senhor Jesus Cristo; porque somente isso poderá libertá-lo. Constantemente,
porém, a Igreja se engana neste ensino e entra nas minúcias destas coisas.
Outro modo de argumentar sobre isso é dizer que
não cabe à Igreja apregoar o divino direito dos reis. Houve tempo em que a
Igreja fazia isso. Tiago Primeiro era muito astuto. Ele dizia: “Nenhum bispo, nenhum rei!” Assim, ele e
a igreja episcopal permaneceram unidos, e a igreja se tornou uma defesa e um
baluarte em prol do divino direito dos reis. Agindo assim, ela abrigou sua
posição e foi se tornando desleal à sua doutrina. A missão da Igreja não é
defender algum sistema particular - político, social ou econômico. O cristianismo,
digo e repito, embora não condene a escravidão, não a desculpa. Sua atitude é
destacada, visando a princípios e neles interessada.
Isso leva ao quarto
princípio. O interesse da Bíblia, o interesse do cristianismo, relaciona-se
com o modo como o cristão deve reagir a
estas coisas e como deve viver num
mundo como este. Essa é a essência do ensino, e aqui a temos. Paulo, quando
passa a falar dos “servos e senhores”,
não se põe a dar suas opiniões como certos cristãos fazem sobre a questão da
escravatura. “Vós, servos”, diz ele,
“obedecei a vossos senhores segundo a
carne, com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a Cristo; não
servindo à vista...” Noutras palavras, seu único interesse é quanto a se
conduzirem eles como cristãos naquela situação. Igualmente com os senhores. “E vocês, senhores, façam o mesmo para com
eles.” Não lhes fala que renunciem aos seus escravos; em vez disso, diz: “Não os ameacem, não sejam maldosos, não
sejam cruéis com eles”, - “sabendo
também que o Senhor deles e vosso está no céu, e que para com ele não há
acepção de pessoas”.
Temos o mesmo ensinamento na Primeira Epístola de
Pedro, capítulo 2: “Vós, servos,
sujeitai-vos com todo o temor aos senhores” - e, observem - “não somente aos bons e cortezes, mas também
aos maus”. Ele não diz aos escravos que se levantem e se rebelem contra os
senhores. A Bíblia nunca faz isso.
Mas está muito interessada em asseverar
que o cristão jamais deverá abusar da sua
posição - “não tendo a liberdade por
cobertura da malícia”. Esse é o
perigo, que o cristão venha a usar sua posição cristã para acobertar a malícia que há nos seu coração. Isso tem acontecido com
freqüência; em nome do cristianismo têm sido feitas coisas que jamais deveriam
ser feitas. E isso faz inenarrável
dano ao cristianismo. Tem acontecido de ambos os lados. É sempre porque os
homens e os senhores esquecem que o seu dever é para com Deus, seu Senhor que
está no céu, que surgem os problemas.
Facilmente poderíamos alongar-nos sobre estes
problemas. Hoje há muitos que dizem que as classes trabalhadoras, assim
chamadas, estão fora da Igreja porque a Igreja da época vitoriana era, em
grande parte, uma Igreja de senhores. Vá às regiões mineiras de qualquer parte
da Grã-Bretanha, e sistematicamente ouvirá isso. Farão você lembrar-se de que,
no século passado, com muitíssima freqüência, o chefe no emprego e no templo
era o mesmo, o líder dos oficiais da
Igreja geralmente era o gerente das
obras. Dizem aqueles operários que foi por isso que se revoltaram contra o
cristianismo e contra a Igreja. Isso com certeza aconteceu em grande medida na
Rússia. A monarquia na Rússia estava sob a forte influência da Igreja Ortodoxa Russa, com aquele mau frade Rasputin dominado a família real. Assim,
o povo russo identificava com o cristianismo esse horrível abuso; e jogou fora
o que pensava que era o cristianismo. Na realidade não estava fazendo nada
disso; estava rejeitando uma horrível perversão do cristianismo, que absolutamente
não era cristianismo. No entanto, isso tem acontecido muitas e muitas vezes;
tem acontecido dos dois lados (dos servos
e dos senhores); e isso em grande
parte porque ambos não praticaram e
não entenderam o princípio que o
apóstolo enuncia aqui. O que nos compete primordialmente é relacionar-nos corretamente com as posições em que nos achamos.
Em Romanos capítulo 13 encontramos exatamente o
mesmo ensino. Ali o apóstolo diz aos cristãos que se sujeitem “às potestades superiores; porque
não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos
a condenação”. Estas palavras foram escritas a pessoas que estavam debaixo do maligno poder do
imperador Nero. Mas é o que cabe ao cristão fazer. Seu interesse
principal é ser servo de Deus e de Cristo. Seja qual for a sua posição,
sejam quais forem as circunstâncias, seja ele senhor ou servo, rei ou súdito, nada disso importa. Todos devem sujeitar-se juntamente, e devem cuidar para, por todos os meios, comportar-se como pessoas cristãs. Não
devem preocupar-se primariamente com as situações
e condições como tais; sua
preocupação como “peregrinos da
eternidade”, como “estrangeiros e peregrinos”,
deve ser a de serem fiéis ao seu Senhor e se prepararem para o seu lar eterno.
Passo agora ao quinto e último princípio. Alguém poderá perguntar: “Pois bem, que dizer de melhorar as
condições? Não está você, na realidade, tomando apenas e afinal de contas uma
defesa desse “statu quo”? Você afirma que não está fazendo isso, mas com
efeito é o que está fazendo. Diz você que
o cristão não deve ficar preocupado com as condições, porém que deve
concentrar-se em ter um comportamento semelhante ao de Cristo nas condições
existentes”. A resposta a esta questão é muito simples. Não cabe à Igreja preocupar-se em melhorar
as condições; o que lhe compete sempre é propor os princípios bíblicos que venho expondo. Jamais deverá atacar
diretamente as circunstâncias e as condições. Entretanto, ao mesmo tempo,
não significa que o cristão individual, como cidadão de um país, não deva preocupar-se em melhorar as condições.
Aí, parece-me, está a linha divisória. O cristão individual nunca deve agir
como indivíduo isoladamente. Mas isso
não significa que, como cidadão do país a que pertence, não tenha o direito de tomar parte no melhoramento das
circunstâncias e condições em que
ele e outros vivem.
Funciona da seguinte maneira: a mensagem cristã
visa, antes de tudo, produzir cristãos. Difunde a pregação do evangelho,
convence os homens do pecado, chama-os para o sangue de Jesus, trá-los a esta
Palavra pela qual eles podem nascer de novo mediante o poder do Espírito,
enfim, transforma-os. Depois, tendo-os transformado desse modo, prossegue,
ensinando-lhes estes grandes princípios. Essa é a direta missão e atividade
própria da Igreja. Todavia, à medida que realiza isso, a Igreja faz
indiretamente mais uma coisa; obviamente influencia a personalidade completa
dessas pessoas - sua mente, seu pensamento, seu entendimento. E no momento em que isso começa a acontecer com
os homens, eles passam a ver as coisas de maneira diferente e começam a aplicar
seu pensamento ao viver diário.
Pode-se achar uma ilustração do que digo, por
exemplo, no Despertamento Evangélico ocorrido há duzentos anos. Antes desse
tempo, a maioria do povo comum da Inglaterra era ignorante, analfabeta e levava
uma vida de pecado e sordidez. Os fatos podem ser encontrados nos livros de
história seculares. Havia poucas escolas; o povo estava numa condição de
ignorância, analfabetismo, pecado grosseiro e vil. Por que aquela situação se
tornou muito diferente no século passado, e mais diferente ainda neste século?
Foi porque a Igreja cristã dirigiu uma grande campanha social e política? Não é
essa a explicação. Sempre houve líderes individuais da Igreja que tentavam
fazer tais coisas; mais isso nunca levou a nada de valor. A mudança foi
produzida pela obra de evangelização inflamada
e apaixonada de George Whitefield, dos
Wesley e de outros, e a situação se transformou. Qual era a mensagem deles? O
que Whitefield e os Wesley pregavam às multidões populares, por exemplo aos
mineiros das vizinhanças de Bristol? Falavam das condições sociais, de salários
e das horas de trabalho? Acaso os incentivavam para a agitação e protesto
contra as suas misérias, e para se levantarem em rebelião? A resposta se acha
nos seus diários. Whitefield pregava uma mensagem que levava os homens a verem
que eram pecadores nas mãos de um Deus irado que, não
obstante, providenciara um meio para obter-se
perdão. Pregava-lhes sobre as suas
almas, não sobre os seus corpos,
não sobre as circunstâncias e condições em que viviam. Na primeira vez que João
Wesley pregou nas ruas do distrito mais pobre de Newcastle-on-Tyne, seu texto
foi o de Isaías 53: “Ele foi ferido pelas
nossas transgressões, e moído pelas nossas
iniqüidades: o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados”.
A mesma coisa acontecia em toda parte. Os evangelistas sempre tratavam os
homens como homens, e o resultado da sua pregação era que as pessoas mudaram e
eram convertidas. Tomaram-se cristãs, nasceram de novo. Com que resultado? Os
convertidos começaram a usar suas mentes. Não as usavam antes; viviam para
beber, jogar e entregar-se a esportes cruéis como a briga de galos. Agora,
porém, tendo sido despertados espiritualmente, a personalidade toda se
despertou. Descobriram que possuíam mentes. A primeira coisa que desejaram
fazer foi ler a Bíblia, mas muitos
não sabiam ler, e pediram que se lhes ensinasse a ler; não para
poderem estabelecer sociedades e agremiações políticas, e sim para poderem ler a Bíblia. E assim os ensinaram a ler. Dessa
maneira foram despertados e iluminados, e começaram a compreender a
verdade sobre o homem, e sobre a personalidade e a dignidade do homem. E tendo
avançado tanto, foram mais longe ainda; começaram a examinar as circunstâncias
e condições em que viviam. Começaram a inquirir se essas condições eram boas,
justas e retas e, chegando à conclusão de que não eram, puseram-se a tomar
medidas para mudá-las.
Isso era certo e bom; e inteiramente de acordo
com o ensino escriturístico. Esse ensino não denuncia a escravidão, e não a
desculpa. Não espera que os homens se levantem e a mudem; tampouco mantém
simplesmente o “statu quo”. Cuida
primeiro do homem, e depois, sob a influência deste ensino, e com este novo entendimento, o próprio homem
começa a examinar a situação e lidar com ela.
Podemos resumir isso da seguinte maneira: a Igreja
não manda fazer nenhuma dessas mudanças; nunca mandou. Não há uma palavra na
Bíblia que diga aos homens que suprimam a escravidão; e, contudo, sabemos que
foram homens cristãos que finalmente fizeram isso acontecer. E isso está
exatamente de acordo com o ensino bíblico. Não há mandamento para fazê-lo; a
Bíblia não trata dessas coisas diretamente, todavia, quando os homens se tornam
cristãos, começam a pensar, e pensam sobre os dois lados da questão. Já dei um
exemplo de como os operários começaram a pensar. Mas, por outro lado, vejam
William Wilberforce. Era rico, nascido no regaço do luxo. Por que passou a
preocupar-se com a questão da escravatura? Há somente uma resposta para essa
pergunta: foi sua conversão. William
passou pela experiência de uma conversão tão
radical como a dos mineiros beberrões das cercanias de Bristol. Ele foi
inteiramente transformado e, de almofadinha
da sociedade, veio a ser um grande
reformador, e conforme a sua mente ia se tornando cada vez mais cristã, foi
examinando a questão da escravatura e viu que esta era um mal. Não porque
tivesse achado algum mandamento especial na Bíblia, porém devido ao seu modo de pensar em geral, e da sua perspectiva cristã em geral! A mesma
coisa se aplica ao Conde de Shaftesbury, principal responsável pelos Atos sobre
a Indústria, ou seja, pelas leis trabalhistas inglesas do século passado. Era
outro homem, aristocrata dos aristrocatas,
nascido na riqueza e no luxo, alguém que experimentou
uma conversão bíblica. No entanto, posto que sua mente fora renovada em Cristo, ele começou a ver tudo diferentemente e veio a preocupar-se com as
condições predominantes nas fábricas e nas minas. A mesma coisa se pode dizer
do doutor Bernardo, fundador do Lar das Crianças Desamparadas.
E sempre aconteceu assim! Não é tarefa da Igreja
tratar desses problemas diretamente.
A tragédia hoje é que, enquanto a Igreja fica falando desses problemas
particulares e tratando diretamente de política e das condições econômicas e
sociais, não estão sendo produzido
cristãos, as condições estão piorando e os problemas estão se avolumando. É
quando a Igreja produz cristãos que
ela muda as condições, mas sempre indiretamente.
Darei outra ilustração deste mesmo ponto. Li num
artigo muito recente uma coisa que já soubera, uma coisa que de algum modo me
havia fugido da memória. Referia-se ao grande Charles Simeon, um clérigo
anglicano que serviu em Cambridge de 1782 a 1836, e que foi uma das maiores influências na igreja anglicana até por volta
de 1860, e na verdade além dessa data. Foi o seguinte fato que o artigo me fez
recordar. Charles Simeon esteve pregando em Cambridge durante todo o período
das guerras da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas, de 1790 a 1815,e durante todo o transcurso desses vinte e cinco anos, a despeito de
todas as crises, alarmes e temores, Charles Simeon não pregou nem uma só vez sobre as guerras. Nem uma só ocasião! Foi
amarga e severamente criticado por isso. Por que não tratou desses
acontecimentos? Por que não dedicou tempo aos fatos correntes e não tratou
deles, como se supõe que um clérigo deve fazer? Havia muitos outros que estavam
fazendo isso, mas já faz tempo que os seus nomes foram esquecidos. Esses
pregadores, de sermões tópicos podem
ter sido populares em seu tempo, mas ninguém sabe nada a respeito deles hoje -
nem mesmo os seus nomes. Não tiveram efeito
sobre as condições da sua época;
não fizeram a mínima diferença para Napoleão, nem para as guerras, nem para
coisa nenhuma; porém no seu tempo os seus nomes estavam nos jornais e nas
manchetes! Mas isso não levou a nada; foi fôlego perdido. O pregador anglicano
que realmente influenciou a vida da nação foi Charles Simeon; e o fez pelo método bíblico, isto é indiretamente. Ele o fez pregando o evangelho e transformando homens.
A Igreja não pode mudar as condições; e não foi destinada a mudá-las. No momento em que tenta fazer isso, de várias maneiras fecha a porta
da oportunidade evangelística. Se eu atacar o comunismo, os comunistas ficam
logo na defensiva, e não se dispõem a ouvir o meu evangelho; nem sequer lhe dão
ouvidos. Tenho que evitar isso. Não devo lançar um ataque direto a nenhuma
destas coisas, quaisquer que sejam. Minha preocupação como pregador do evangelho é com as almas
dos homens, minha função é produzir
cristãos; e quanto maior for o número de cristãos, maior será o volume de
pensamento cristão. Aos cristãos individuais compete entrar no Parlamento, como
fez Wilberforce, ou falar na Câmara dos Lordes, como fez o Conde de
Shaftesbury, ou candidatar-se à eleição num conselho ou câmara local, e em
geral atuar como bons cidadãos. Vocês são cidadãos - procedam de acordo. Não
permitam que estas atividades absorvam todo o seu tempo; não façam delas a
coisa principal da sua vida. Muitas vezes tem sido esse o erro. Acredito que,
em grande parte, as condições das nossas igrejas hoje se devem a esse fato. Sou
suficientemente idoso para lembrar o tempo em que, neste país, a principal
diferença entre a igreja anglicana e a capela não-conformista era a diferença
entre o torysmo e o liberalismo. O torysmo defendia o “statu quo” e, no outro lado, o não-conformismo apresentava
reformas. Quanto ao não-conformismo, a época era dos pregadores políticos. Como
eu já disse, o pregador político é tão repreensível como os bispos e arcebispos
que muitas vezes têm sido apenas capelães do palácio. Juntos eles têm, com
freqüência, desviado a atenção do povo para longe da mensagem da Palavra de
Deus. Certamente não conseguiram produzir cristãos; e é porque existem tão
poucos cristãos no mundo atual que prevalece a impiedade.
Temos, pois, até aqui considerado os cinco
princípios bíblicos que regulam as relações de governantes e governados,
senhores e servos, empregadores e empregados. Devemos ir adiante para
descobrir como as Escrituras nos dão mais orientação sobre a maneira de pôr em
execução estes cinco princípios. Precisamos dessa orientação e, graças a Deus,
ela se acha aqui para nós. Todavia, se omitirmos a ênfase principal, os
princípios centrais, qualquer outra consideração adicional será pura perda de tempo.
A questão que eu gostaria de levantar é: qual é o seu interesse obcecante? São
as condições sociais e políticas em que você se encontra, ou é a sua relação
com Deus e com a eternidade? Se estiver obcecado por suas condições atuais; se
estiver agitado, irritado e amargado por causa delas, e simplesmente estiver
condenando as pessoas de um lado e do outro, você já está fora da posição do Novo Testamento. O interesse
ardente do cristão é sua relação com Deus, com o céu e com a eternidade e,
sendo assim, considera secundárias
todas as outras questões. Ele as observa fria e serenamente, compreendendo que
a sua primeira função é relacionar-se como cristão com tudo o que a
vida envolve. Ele é diferente dos não
cristãos. E somente quando o seu
espírito está certo desta forma, que ele começa a considerar se, como cidadão que vive neste mundo (mas que
não pertence a este mundo), deverá tentar mudar
ou melhorar ou conservar isto ou aquilo - seja qual for o seu ponto de vista. Mas
o interesse final, o interesse vital é sempre este: “Meu Senhor está no céu”; seja eu servo ou senhor, seja eu empregado ou empregador, será que estou me sujeitando ao Senhor e vivendo para a Sua glória?
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