Madame
Guyon
CAPÍTULO 24: A REALIZAÇÃO
FINAL DO CRISTÃO – PARTE 3
[Concluímos a segunda
parte deste assunto considerando o primeiro estágio da atração para as
profundezas de Deus, em que Ele nos ajusta a Sua pureza.]
Mas há dois estágios neste atrair de Deus. O segundo estágio
é o da uniformidade com Deus.
Vemos que há um progredir, no primeiro estágio, o de ser
ajustado com Deus. Há também um progresso no segundo estágio. O esforço próprio
gradualmente diminui. Finalmente, cessará de modo completo. Quando o esforço
próprio cessa, sua vontade fica passiva diante de Deus. Você chegou à
uniformidade.
Isso está além de um estado passivo, ou, ao menos, trata-se
do último aspecto do estado passivo. É neste ponto que você começa a render-se
aos impulsos do Espírito Santo, até que
você esteja totalmente absorvido Nele. Você está em completa concordância
com Sua vontade, em todas as coisas – em todos os momentos.
Isto é união. É união divina. O eu teve seu fim. A vontade
humana é totalmente passiva e responde a cada momento da vontade de Deus. Não
necessitaria adverti-lo: isto é um processo que, na verdade, toma logo tempo.
A atividade e o esforço foram envolvidos, a fim de chegar a
tais profundezas em Cristo? Sim. A atividade é a porta. Todavia, não deveríamos
nos demorar à porta. De fato, seu alvo, sua tendência, deve ser sempre isto:
perfeição final.
Por favor, saiba que todos os “auxílios” e “muletas” devem
ser colocados de lado, ao longo do caminho, ou o alvo final não pode ser
alcançado. Sim, a natureza do eu não somente é posta de lado, mas sim também
todos os auxílios que lhe apresentei no começo deste livro. Aquelas coisas são
muletas elementares para ajudá-lo no começo e no processo. Mas todas as coisas
devem, finalmente, ser colocadas de lado, quando chegamos às profundezas em
Cristo.
Tais auxílios foram muito necessários ao entrarmos neste
caminho, mas depois se tornaram realmente prejudiciais. Mesmo assim, alguns
cristãos ainda se apoiam obstinadamente nessas muletas.
Paulo declara isso:
“Esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que
diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de
Deus em Cristo Jesus”
(Fp 3.13-14)
Eis aqui um viajante. Ele se aventurou a uma longa jornada.
Chega à primeira estalagem, e aí permanece para sempre. Qual a razão disso? Disseram-lhe
que muitos viajantes vieram por este caminho e permaneceram nesta mesma
estalagem, e que mesmo o senhor da casa, certa vez ficou aí.
Seguramente, nosso viajante abandonou seu bom senso ao
permanecer na primeira estalagem, apenas por essa razão.
Oh, alma! Tudo que se deseja para ti é que avances para o
alvo! Toma a estrada mais curta, o caminho fácil! Ele agora está traçado para ti!
Lembra-te somente disto: não pares no primeiro estágio!
Você deve seguir o conselho de Paulo: consinta em ser guiado
pelo Espírito de Deus (Rm 8.14). Ele, o espírito, conduzirá você, sem erros,
para o propósito final, para o qual sua alma foi criada. O propósito final é o
gozo de Deus.
Pare um momento e apenas considere a razoabilidade da estrada
à sua frente.
Primeiro todos temos que admitir que Deus é o Bem Supremo.
Certamente, então, a bênção final é a união com Ele. Cada santo tem glória
Nele, não é assim? Contudo, a glória em cada um de nós é tão diferente. Por
quê? A glória difere de acordo com o grau dessa união do Cristo com Deus.
Como já vimos, a alma não pode obter essa união pelo esforço,
pela mera atividade ou pelo seu próprio poder. Assim é porque Deus, e somente
Ele, Se comunica à alma do homem – e Ele comunica a Si mesmo, em proporção à
capacidade da alma de permanecer passiva. Uma grande, nobre e extensa
capacidade passiva auxilia o Senhor a derramar-Se na alma.
Em segundo lugar, você só pode ser unido a Deus em
simplicidade e em passividade. Simplicidade – no fato de que Deus é tudo;
passividade – no fato de que a vontade humana está, em todas as coisas, em
acordo com a vontade divina.
Esta união é beleza, em si mesma. Portanto, segue-se que o
caminho que leva à passividade – e daí para Cristo – não poderia ser outra
coisa senão bom. É o caminho mais livre de perigo, e o melhor.
Mas há perigo em conhecer a união com Deus? Alguns dizem:
“sim”, e desencorajam até a pensar nela. Mas teria seu Senhor realizado esta
experiência, este perfeito caminhar, este caminho necessário, se for perigoso?
Não!
Este estado está disponível a todos, e o caminho de acesso a
ele pode ser percorrido por todos. Todos os filhos de Deus têm sido chamados
para se alegrar em Deus – numa alegria que pode ser conhecida tanto neta vida
como na vida por vir. Naquele dia, nosso estado será de eterna felicidade em
união com Deus. Nosso chamado nessa vida
é o mesmo.
Antes que chegue o fim deste livro, alguns pensamentos devem ser
expressados.
Tenho falado a você sobre o gozar a Deus, não as dádivas de
Deus. Os dons não constituem a beatitude final. Os dons não podem satisfazer sua alma ou seu espírito. Seu espírito
é tão nobre e tão grande, que os mais exaltados dons que Deus tem a conceder
não podem trazer felicidade a ele, ao espírito... pelo menos até que o Doador
também Se dê a Si mesmo.
Querido leitor, todo o desejo do Ser Divino pode ser escrito
em uma sentença: Deus deseja dar-Se completamente a cada criatura que se chama
pelo Seu Nome. E isso Ele fará ao dar-Se a cada um de nós, de acordo com nossa
capacidade individual.
Mas ai de nós! O homem é uma criatura notável! Quão
relutante é em permitir-se ser atraído para Deus! Quão temeroso, quão
notavelmente temeroso é de preparar-se para a união divina!
Uma última palavra.
Uma pessoa estaria quase certa se lhe dissesse que não está
correto você se pôr em um estado de união com Deus. Concordo plenamente. Mas
acrescento o seguinte: ninguém pode pôr-se em união com Deus. Não seria
possível, não importando quão grande fosse o esforço para isso. A união da
alma com Deus é algo que somente Deus mesmo faz. Não há, portanto, qualquer
propósito em falar-se contra aqueles que parecem estar tentando unir-se a Deus;
tal união (Deus com o eu) não é mesmo possível.
Você poderá encontrar alguém que lhe diga: "Algumas
pessoas ouvirão sobre isso e pretenderão ter chegado a esse estado, quando, de
fato, não o alcançaram". Oh, querido leitor, tal estado não pode ser
imitado; não mais do que um homem faminto, à beira da morte por inanição, o
quisesse convencer de estar cheio. Um desejo, uma palavra, um suspiro, um
sinal, algo inevitavelmente escapará dele e trairá o fato de que está longe de
estar satisfeito.
Uma vez que ninguém pode obter união com Deus por seu
próprio esforço, não pretendemos levar ninguém a isso. Tudo que se pode fazer é
apontar o caminho que, eventualmente, levará a esse ponto. Oh, sim, e outra
coisa: pode-se implorar à alma que busca para que não desista ao longo do caminho.
(Querido leitor, não se aloje em algum ponto da estrada, nem
se torne agarrado a práticas externas que o ajudaram a começar. Tudo isso, com
o "orar a Escritura" ou "contemplar o Senhor", deve ser
deixado para trás, no momento em que o sinal para isso lhe é dado.)
Alguém que é experiente em ajudar a outros sabe que não pode
levar outro cristão a essa relação com Deus. Tudo que pode fazer é mostrar a
água da vida e auxiliar aquele que busca. Isso, sem dúvida, ele pode e deve
fazer. Seria cruel mostrar uma fonte ao sedento e então amarrá-lo de tal modo
que não pudesse chegar a ela. Alguns falam da divina união, mas nunca permitem
que aquele que busca fique livre de suas algemas. Isso tem acontecido, e o
pobre santo chega a morrer de sede.
Então, concordemos nisto: há uma união divina, e há um
caminho para ela. O caminho tem um começo, um percurso e um ponto de chegada.
Mais ainda, quanto mais perto você chega da consumação, mais se desfará das
coisas que o ajudaram a começar.
Naturalmente, há também um estágio médio, pois você não pode
saltar do começo para o fim sem um espaço intermediário. Mas se o fim é bom,
santo e necessário, e se a estrada também é boa, você pode estar certo de que a
jornada entre esses dois pontos também é boa!
Oh,
a cegueira da maior parte da humanidade, que se orgulha da ciência e da
sabedoria! Quão verdadeiro é, oh meu Deus, que escondestes estas maravilhosas
coisas dos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos! (J.G.)
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