Dietrich Bonhoeffer, pastor e teólogo protestante alemão, é uma das figuras mais brilhantes e sugestivas da recente historia da Igreja.
Como teólogo, as idéias de Bonhoeffer sobre um «cristianismo laico», e sua ética denominada «situacional», que foram reforçadas por seu próprio martírio, exerceram uma considerável influencia sobre o pensamento protestante do pós-guerra na Grã-Bretanha e América.
Muitas facções denominacionais e diversos grupos o reclamam como o seu porta-voz, mas é a sua vida notável e a sua autoria de difíceis obras devocionais e acadêmicas que lhe deram um lugar na história da igreja do século vinte.
De índole pacífica, formou parte da resistência contra o terror nacional-socialista alemão, primeiro comprometendo-se no seio da Igreja Confessional –que ajudou a fundar– e, mais tarde, colaborando com os conspiradores em torno do almirante Canaris contra Adolf Hitler.
Bonhoeffer foi detido em março de 1943, preso, e enforcado pouco antes do fim da guerra.
Família e juventude
Bonhoeffer nasceu em Breslau, Silesia (hoje parte da Polônia), em 4 de fevereiro de 1906, em uma época em que tudo parecia sorrir, porque ainda não se manifestavam os graves problemas sociais que estavam sendo gerados no oculto.
A família em que se formou o jovem Bonhoeffer, pertence à elite cultural do Império alemão. Dietrich é o sexto de oito irmãos. O seu pai, Karl Bonhoeffer, era um psiquiatra proeminente em Berlim. A sua mãe, Paula, descendia de uma família de nobres, os von Hase; era uma das poucas mulheres da época que ostentava título universitário. O seu avô materno era catedrático de teologia, além de exercer às vezes de pregador da corte do imperador Guillermo II. A família de sua avó se destacava por seus dotes musicais e artísticos. (De fato, a sua avó materna, talentosa pianista, tinha sido discípula de Franz Liszt).
Paula, professora de profissão, cuidou da educação primária de seus filhos, até que iniciaram os seus estudos de bacharelado. É uma família em que impera a tolerância – embora tenha procurado manter a estrutura patriarcal. Aos seus filhos lhes conscientizava o sentido de responsabilidade e de auto-disciplina, ao mesmo tempo um sentimento solidário e uma mente aberta.
Em 1912, a família Bonhoeffer se muda para Berlim. O pai se encarregou da cadeira mais importante da Psiquiatria e Neurologia da Alemanha e, também, da gestão da ‘Charité’, famosa clínica universitária de neurologia da Coroa prussiana. A partir de 1916, a família vive no elegante bairro de Grunewald, onde residem muitos catedráticos e intelectuais. Ali vivem, entre outros, o teólogo liberal Adolf von Harnack, e que mais tarde seria designado prêmio Nobel de Física, Max Planck.
Para os Bonhoeffer, a primeira guerra mundial deixa um rastro fatal. O filho mais velho, Walter, morre, depois de sofrer ferimentos graves, no último ano da guerra.
Dietrich começa seus estudos universitários em 1923, recém cumpridos os 17 anos, coincidindo com o ponto culminante da profunda crise econômica na Alemanha depois da guerra. A sua decisão de estudar teologia surpreende à família, sendo que eram indiferentes em matéria religiosa. Embora na família houvesse teólogos, a maioria dos Bonhoeffer se inclinava por carreiras dentro das Ciências Naturais e do Direito.
O seu irmão mais velho (próximo de ser um físico destacado) tentou dissuadi-lo de sua decisão, alegando que a igreja era fraca, tola, inaplicável e indigna do compromisso para o resto da vida de um homem jovem. «Se a igreja for realmente como você diz», respondeu o jovem sobriamente, «então terei que reformá-la».
Dietrich iniciou seus estudos de teologia na universidade de Tuebingen e terminou em Berlim. Os professores Adolf Schlatter e Adolf von Harnack são os que mais influencia exerceram no jovem estudante. Ao teólogo reformista Karl Barth não chegou a conhecê-lo, somente um pouco mais adiante.
Na Universidade de Berlim, recebeu o seu doutorado em teologia com honras na idade de 21 anos. A sua dissertação doutoral expôs o seu brilhantismo em uma ampla frente, e o introduziu entre os eruditos internacionalmente conhecidos. Já durante uma estadia anterior em Roma, Bonhoeffer tomou conhecimento do que iria ser o tema principal do seu pensamento teológico: a Igreja. Uma descoberta que pela primeira vez se manifestará literariamente em sua tese doutoral «Sanctorum Communio – uma investigação dogmática a respeito da sociologia da Igreja». «Cristo existe na comunidade» é o leitmotiv deste precoce trabalho.
É assombroso que um jovem estudante de 21 anos escreva uma reflexão dogmática sobre a sociologia da Igreja à partir de Cristo. Refletir à partir de Cristo sobre o que a Igreja deveria ser, parecia incongruente. Para Bonhoeffer, a Igreja, muito mais que uma instituição, é Cristo que existe sob a forma de Igreja. Cristo não está um pouco presente através da Igreja, não; existe hoje para nós sob a forma de Igreja. Ele é quem assume a nossa sorte, que tem tomado o nosso lugar.
Depois de terminar os seus estudos, Bonhoeffer, em 1929, vai por um ano a Barcelona. Ali, como vigário de uma paróquia de língua alemã no estrangeiro, conheceria mais de perto a vida de igreja.
Como em 1930 tinha menos de 25 anos, os regulamentos da igreja alemã o impediam de ser ordenado. Isto lhe deu oportunidade de passar um ano fazendo uma pós-graduação no Union Theological Seminary de Nova Iorque.
Da mesma forma que alguns anos antes em Roma, o encontro com um mundo e uma igreja diferentes o marcarão para o futuro. Dietrich ficou impressionado com Nova Iorque, devido à crise econômica que a afeta.
No Union Theological Seminary há alunos de distintas crenças, procedentes de diversos países. Ele ficou consternado com a frivolidade com a qual os estudantes americanos se aproximavam da teologia. Incapaz de permanecer em silêncio a respeito, ele informou aos futuros pastores: «Neste seminário liberal os estudantes riem com desprezo dos fundamentalistas na América, quando todos os fundamentalistas sabem muito mais da verdade e da graça, da misericórdia e do juízo de Deus».
Perto do Seminário estava Harlem. Dietrich Bonhoeffer se integrou da situação da população negra nos ghettos através dos seus amigos, especialmente através do seu companheiro negro Frank Fisher. Também conheceu as igrejas em tendas nos subúrbios da cidade.
Dietrich Bonhoeffer teve também uma grande amizade com outro de seus companheiros: O pastor francês Jean Lasserre, que era pacifista. Apóia esta sua atitude no Sermão do Monte, na bem-aventurança de todos aqueles que seguem a paz e na exigência do amor para o inimigo. À medida que chegou a impressionar estas idéias do seu amigo, pode-se ver no rumo que tomou a vida de Bonhoeffer. Uns anos depois, em uma carta que escreve ao seu irmão mais velho Karl Friedrich, reconhece que o encontro com este amigo é o que lhe revelou a verdadeira essência de ser cristão.
Bonhoeffer, o valente opositor
De volta para Berlim, Bonhoeffer se vê confrontado também na Alemanha com graves problemas sociais, de dimensões desconhecidas até então. Nessas circunstâncias, o partido dirigido por Adolf Hitler, a NSDAP, ganha muitos adeptos. Sob a direção de Joseph Goebbels, o nazismo consegue converter-se em um movimento de massas, que alcança todas as classes sociais.
Já antes de sua estadia em Nova Iorque, Bonhoeffer, com seu trabalho filosófico-religioso «Ação e Ser», tinha obtido a cadeira na especialidade de Teologia Sistemática na Universidade Friedrich-Wilhelm de Berlim. Era o docente não numerário mais jovem da Universidade. As suas classes e seminários destacavam por um enfoque pouco convencional nas questões de fé cristã. Uma série de reuniões e excursões organizadas fora do âmbito universitário contribuíram para a criação de um círculo de estudantes em torno de Bonhoeffer, a partir do qual se formaria um grupo de estreitos colaboradores nos enfrentamentos internos da Igreja depois de 1933.
Além disso, exerce o pastorado para os estudantes da Escola Técnica Superior de Charlottenburg. É então quando recebe o encargo da autoridade eclesiástica de preparar, em um bairro de trabalhadores, um grupo de adolescentes «indisciplinados» para a confirmação. A «nova paróquia» de Bonhoeffer na Igreja de Sião rompe com a barreira social da igreja burguesa. Bonhoeffer aluga uma casa em Alexanderplatz para poder viver perto dos seus tutelados. Depois de celebrar a confirmação, os leva para a residência de verão dos seus pais.
Ao mesmo tempo, desenvolve com seus amigos e estudantes o projeto de um centro juvenil para jovens desempregados por sugestão da Associação de Trabalho Social. O projeto não se concretizou por causa da ascensão ao poder dos nacional-socialistas: Uma de suas colaboradoras, Anneliese Schnurmann, era judia.
Em 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler é nomeado chanceler do Reich alemão. Dois dias depois, Hitler pronuncia o seu primeiro discurso radiofônico ao povo alemão. Coincide que esse mesmo dia também está programado uma conferência de Bonhoeffer na rádio. O seu tema era «O Führer e a individualidade na geração jovem». Bonhoeffer não pode terminar sua conferência radial; a emissão é interrompida pela direção. Pouco depois se desencadeia a repressão nazista.
No mês de julho, o Estado chega a um acordo com a Igreja Católica, e em seguida, com a ajuda dos «Cristãos alemães», um agrupamento vinculado a NSDAP, tenta assimilar a Igreja Protestante. Procura-se unificar as diferentes igrejas regionais, até então independentes, em uma Igreja centralizada do Reich. Logo o controle seria total.
A igreja na Alemanha lutava por sua vida. E surgem dilemas como o seguinte: A igreja vivia só para o evangelho, ou devia render-se ao estado para reforçar a ideologia do estado? Um velho professor de teologia que se conformou à ideologia nazista para não perder o seu trabalho comentou: «É uma grande lástima que a nossa melhor esperança na faculdade esteja se perdendo na luta da igreja». Enquanto a luta se intensificava, os sermões de Bonhoeffer chegaram a ser os mais consoladores, os mais seguros da vitória de Deus, e os mais desafiantes.
Surge a Igreja Confessional
Como conseqüência do intervencionismo estatal no seio da Igreja surge a oposição, em que Bonhoeffer também participa. A partir desta oposição se forma a Igreja Confessional. Os seus representantes mais significativos são, além de Bonhoeffer, Karl Barth e Martin Niemöller. Barth é o autor da Declaração de Barmen, que sustenta que a união da fé e da Igreja está sujeita somente a Jesus Cristo tal como nos dá a conhecer as Santas Escrituras.
Esta igreja é chamada «confessional» porque confessava que podia haver só um führer ou líder para os cristãos, e este não era Hitler, mas Cristo. Enquanto isso, os bispos luteranos permaneciam silenciosos na esperança de preservar a unidade institucional, e a maioria dos pastores temerosos opinavam que não era necessário jogar para serem heróis confessionais. Frente a tal covardia ministerial, Bonhoeffer advertiu os seus colegas que não deviam tentar converter Hitler, mas tinham que assegurar-se de eles mesmos serem convertidos. Nas reuniões gerais, a Alemanha seguiu sendo representada tanto pela Igreja Confessional como pela Igreja do Reich, e os luteranos, que se mantêm neutros.
Mais tarde, um bispo anglicano que conheceu na Inglaterra, escreveu de Bonhoeffer: «Ele era claro como o cristal em suas convicções; e como ele era jovem, e como ele era humilde de coração, ele viu a verdade e a declarou com total ausência de temor». O próprio Bonhoeffer escreveu a um amigo acerca deste tempo: «Cristo está olhando para baixo, para nós, e está perguntando se ainda há alguma pessoa que o confesse».
Bonhoeffer ajudou a Martin Niemöller a organizar «Pfarrernotbund», uma federação para o apoio dos pastores afetados pela repressão das autoridades eclesiásticas cristão-alemãs, inclusive pela ‘lei ariana’.
Em agosto de 1934 acontece na ilha dinamarquesa de Fanö uma Conferência de Jovens pela Unidade. Em um dos discursos ali, Bonhoeffer diz: «Como se faz a paz? Quem pode proclamar a paz de forma que todo mundo ouça, que todo mundo se sinta obrigado a ouvi-la? Só um, o grande Concílio mundial da Santa igreja de Cristo pode dizer tão alto que o mundo se sinta obrigado a ouvir a mensagem de paz, e que os povos se alegrem de que esta igreja de Cristo tire em nome de Cristo as armas das mãos dos seus filhos, e os proíba de guerrear e proclame a paz de Cristo neste mundo enfurecido».
Por causa da sua estadia em Nova Iorque, para Bonhoeffer a unidade se converte no principal objetivo do seu interesse eclesiástico e teológico. Os esforços das igrejas cristãs por unificar a fé e a prática, estão para ele muito relacionados desde o começo com os esforços por manter a paz, agora ameaçada. Como Secretário da «Liga Internacional de Cooperação Amistosa das Igrejas» colabora na organização de uma série de conferências relacionadas com os esforços pela paz por parte dos cristãos.
Entre 1933 e 1935, foi pastor de duas igrejas de língua alemã em Londres: St. Paul e Sydenham. Tinha aceitado este cargo no estrangeiro, porque estava decepcionado pela quase total passividade inicial da oposição interna da Igreja. Em Londres, ele se encontra freqüentemente com George Bell, o bispo de Chichester; se tornaram muito amigos.
Seminário de pregadores
A partir de abril de 1935, Dietrich Bonhoeffer dirige, por ordem da Igreja Confessional, o seminário de pregadores em Finkenwalde, perto de Stettin, Pomerania, em que prepara os jovens como pastores protestantes. Era uma espécie de monastério protestante, e foi responsável por muitas de suas considerações a respeito da vida cristã no que se refere à comunhão.
No final desse mesmo ano são declaradas ilegais todas as escolas e seminários de pregadores da Igreja Confessional. Por outro lado, nenhuma das faculdades universitárias de teologia tinha feito acordo com este Seminário. Bonhoeffer comentou concisamente: «Faz tempo que deixei de crer nas universidades».
Bonhoeffer oferece duas opções aos jovens estudantes – ficar ou partir. A maioria deles fica. É tempo de grandes decisões. Em sua obra Nachfolge comentará o sentimento de todos nesse momento: «Os vínculos são destruídos e simplesmente caminhamos para frente. Fomos escolhidos e devemos ‘abandonar’ a existência que tínhamos até agora... O velho fica para trás, entrega-se de tudo... O chamamento à sucessão então significa a vinculação unicamente à figura de Jesus Cristo e a transgressão de toda legalidade pela graça daquele que chama».
O círculo se segue fechando sobre a Igreja Confessional; a oposição se faz muito fustigante e alguns claudicam. Não obstante, Bonhoeffer e outros, continuam firmes. Ele é considerado «a cabeça pensante» desta minoria, que acaba convertendo-se em uma ‘contra-igreja’ ilegal. O governo atuará contra eles com todo tipo de represálias, no princípio ainda moderadamente, já que em 1936 os Jogos Olímpicos seriam em Berlim, e lhes convinha ter uma boa imagem por parte da opinião pública internacional.
Em Finkenwalde cuidava não somente em transmitir conhecimentos teológicos, mas também de experimentar um novo estilo de vida, pois nenhum deles poderia contar com um trabalho remunerado na igreja oficial. O seminário se converte em um lugar de autoconhecimento assim como em um experimento de intensa convivência: ofícios matutinos e vespertinos, momentos para meditação e o silêncio, debates teológicos, mas também atividades culturais e esportivas comuns. Os livros mais conhecidos de Bonhoeffer datam da época de Finkenwalde: «O custo do discipulado» (um comentário do Sermão do Monte) e «Vida em comunhão». Quanto ensino e bênção surgiram desta verdadeira escola de obreiros!
O título em alemão do custo do discipulado é Nachfolge, ‘seguir’. Esta palavra diz o conteúdo do livro. Nele se exige uma vida radical para o cristão que quer ser um autêntico discípulo de Cristo. Para Bonhoeffer, seguir quer dizer reconhecer que se Jesus for verdadeiramente o que disse de si mesmo, ele tem direito a tudo em nossa vida. Nenhuma relação humana pode prevalecer contra ele. Bonhoeffer cita as palavras de Cristo chamando a deixar os seus pais, a família, e todos os seus bens.
Uma das maiores preocupações de Bonhoeffer neste livro é «a graça barata». Esta é uma graça que foi tão diluída que já não se assemelha à graça do Novo Testamento, a graça custosa dos Evangelhos.
Com a expressão graça barata, ele se refere à graça que trouxe caos e destruição; é o assentimento intelectual a uma doutrina sem uma verdadeira transformação na vida do pecador. É a justificação do pecador sem as obras que devem acompanhar o novo nascimento. «É a pregação do perdão sem requerer arrependimento, o batismo sem a disciplina da igreja, a comunhão sem a confissão, a absolvição sem a confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo, vivo e encarnado».
A verdadeira graça, segundo Bonhoeffer, é uma graça que custará a vida para um homem. É a graça que se torna custosa pela vida de Cristo, que foi sacrificada para comprar a redenção do homem. A graça barata surgiu do desejo do homem de ser salvo, mas sem converter-se em discípulo. O sistema doutrinário da igreja, com suas listas de códigos de comportamento, convertem-se em um substituto para o Cristo vivo, e isto barateia o significado do discipulado. O verdadeiro crente deve resistir à graça barata e ingressar na vida de discipulado ativo. A fé já não pode significar ficar quieto e esperar; o cristão deve levantar-se e seguir a Cristo.
É aqui onde Bonhoeffer faz uma de suas reclamações mais perduráveis sobre a vida do verdadeiro cristão. Escreve que «só o que crê é obediente, e só o que é obediente crê». Os homens se tornaram brandos e complacentes na graça barata e, portanto, estão isolados da graça mais custosa da abnegação e da humilhação pessoal. Bonhoeffer cria que o ensino da graça barata provocava a ruína de mais cristãos do que qualquer mandamento para realizar obras.
A causa judia
A Gestapo fecha Finkenwalde em agosto de 1937 e prende a 27 ex-alunos. No entanto, a formação clandestina de pregadores continua durante um tempo em diversos lugares alternativos. Bonhoeffer insistia não só na liberdade de pregar o Evangelho; também estava preparado para arriscar a sua vida como um cristão que resistia a Hitler e que ajudava os judeus a evitar a sua captura. Como conseqüência deste último, em 5 de agosto de 1936 lhe retiraram a autorização para ensinar na Universidade de Berlim.
Já desde o começo, os nazistas deixam muito claro que a luta contra os judeus e o judaísmo seria o ponto central do seu programa. Em 1 de abril de 1933 se inicia o boicote contra as lojas judias. Em setembro de 1935, as «leis raciais de Nuremberg» declaram os judeus cidadãos sem direitos. O rótulo «Abstenham-se judeus» se encontra em cinemas e piscinas, restaurantes e universidades. Estão proibidos os ‘matrimônios mistos’, e proscritas as relações amorosas entre ‘arianos’ e judeus.
Em 9 de novembro de 1938 são devastadas as sinagogas, as lojas e os domicílios dos judeus. O pogrom, que os nacional-socialistas denominam eufemisticamente «a noite dos cristais quebrados», significa o começo de uma avalanche de perseguições; milhões de judeus, conforme o decreto da solução final da ‘questão judia’, acabarão nos campos de extermínio.
No Terceiro Reich, poucos cristãos elevam a sua voz contra a discriminação e a perseguição contínuas dos judeus. Bonhoeffer é um deles. Retrospectivamente reconhece nisso o grande fracasso da Igreja, que só se comprometeu com ‘a questão judia’ na medida em que esta afetava os seus próprios assuntos. Bonhoeffer sustentava que «uma igreja é uma igreja, quando existe para os que não pertencem a ela», e proclamou a sua «obrigação incondicional para com as vítimas de todo sistema social, inclusive se não pertencerem à comunidade cristã».
Em abril de 1933, em uma conferência de pastores berlinenses, Bonhoeffer insistiu em que a resistência política era imprescindível, como reação à privação de direitos que sofriam os judeus. A discriminação dos ‘não-arianos’ também afeta à família Bonhoeffer: Gerhard Leibholz, catedrático de Direito Público em Gotinga e marido da irmã gêmea de Dietrich, Sabine, é um dos proscritos. Acaba emigrando com a sua família para Londres, da mesma forma que o pastor Franz Hildebrandt, amigo de confiança de Bonhoeffer desde seu período universitário. Já em 1933/34, durante a sua estadia como pastor em Londres, Bonhoeffer chegou a conhecer o destino de muitos destes emigrantes judeus alemães.
A tensão aumenta
Em 1 de setembro de 1939 Hitler ataca a Polônia. Esse mesmo ano, Bonhoeffer é chamado às filas. A situação cada vez mais crítica da Igreja Confessional agora enfrenta uma situação completamente diferente. Pensa em emigrar. Alguns dos seus amigos em Nova Iorque pedem para ele ministrar classes no Union Theological Seminary. Assim consegue uma prorrogação e viaja para os Estados Unidos.
Depois de uma dura luta interior, cinco semanas depois, Bonhoeffer, diante da ameaça de guerra, decide voltar para a Alemanha. Ele cria que era necessário sofrer com o seu povo se quisesse ser um ministro efetivo depois da guerra. Voltava, além disso, com o propósito de apoiar à resistência. Quer colaborar, obstruindo «a roda da maquinaria opressora e mortal».
Os contatos e atividades de Bonhoeffer o converteram em um dos principais suspeitos para a polícia secreta e os serviços de segurança do Reich. Logo depois de fechar o Seminário pela segunda vez em 1940, a Gestapo proibiu ele de falar, pregar ou publicar os seus escritos.
Então Bonhoeffer experimenta uma nova frente de ação. Da mesma forma que muitos dos seus familiares, ele estava convencido de que a resistência só podia ter êxito se conseguisse ganhar para a sua causa alguém do alto mando do exército. Por mediação de seu cunhado Hans von Dohnanyi, incorpora-se como colaborador civil à equipe do almirante Canaris no departamento de «Países Extrangeiros/Defesa» do Alto Mando da Wehrmacht (o exército do Terceiro Reich). Oficialmente se ocupa de encargos militares, mas na realidade conspira contra o regime.
Nesta condição, Bonhoeffer realiza várias viagens a Genebra, Suécia, Noruega e Roma, para sondar as possibilidades e condições de paz com os Aliados. Deste modo participa dos preparativos do «Projeto 7», que se ocupará de tirar do país os judeus em perigo. O seu escritório se encontrava em Munique, e durante as suas estadias ‘oficiais’ ali, tinha o costume de retirar-se ao monastério de Ettal, onde redige várias partes de sua «Ética», no inverno de 1940/41.
Durante a sua estadia na Suécia, em maio de 1942, Bonhoeffer contata com o Escritório Estrangeiro Britânico. Leva propostas concretas do círculo de resistência liderado pelo general Hans Oster e pelo general Ludwig Beck. A proposta é recusada.
Bonhoeffer mantém estreitos contatos com Carl F. Goerdeler e outros opositores alemães. Inicialmente tinham idealizado a detenção e ajuizamento de Hitler, planos que não se puderam levar a cabo. Os triunfos militares dos primeiros anos da guerra não tornaram possível um golpe de estado. Precisamente, devido à lealdade inquebrável de grande parte da população e do exército para com Hitler, surge o plano de lhe matar, com a intenção de desarticular assim o poderoso aparato estatal. No entanto, todos os atentados contra Hitler fracassam.
É neste ponto onde, para muitos, a ética de Bonhoeffer se tornou polêmica, e pelo qual ele chegou a ser um dos teólogos mais controversiais. Mas seja qual for o julgamento que tenhamos do assunto (da nossa cômoda posição à distância), o certo é que, no meio do fragor dos acontecimentos, Bonhoeffer tomou uma posição, e "entrou totalmente na tempestade da vida".
Na prisão militar de Tegel
Em abril de 1943, depois de dois atentados frustrados, nos que estava envolvido o grupo de Canaris, Bonhoeffer é detido na casa dos seus pais em Berlim, e encerrado na prisão militar de Tegel. Ao mesmo tempo, a Gestapo detém a sua irmã Christine e seu cunhado, Hans von Dohnanyi.
Nos primeiros dias, a impotência, a solidão e o medo da tortura lhe mortificam. Houve planos para ajudá-lo a escapar, mas ele voltou atrás a fim de que sua família não sofresse represálias. Junto a von Dohnanyi e ao Dr. Müller, outro dos colaboradores do Departamento de Defesa em Munich, Bonhoeffer é processado por alta traição.
No entanto, as investigações levadas a cabo pelo Tribunal de Guerra não encontraram nenhum fato que justificasse tal acusação. A família e os amigos de Bonhoeffer se esforçaram em tecer uma rede de camuflagem, que se manteria intacta até 20 de julho de 1944.
Bonhoeffer sabia que é no lugar onde estamos, pela providência de Deus, onde devemos exercitar o ministério que Deus nos deu. O seu ministério daí em diante na prisão foi uma articulação e uma encarnação do evangelho – consolo para os seus companheiros que aguardavam a morte. Payne Best, um capitão inglês, sobreviveu para render tributo ao pastor do campo de prisioneiros: «Bonhoeffer era diferente, muito tranqüilo e normal. A sua alma realmente brilhava no escuro desespero da nossa prisão. Ele era um dos escassos homens que encontrei alguma vez para quem Deus é real e sempre está perto». Bonhoeffer orava assim no cárcere: «Deus, reúne os meus pensamentos para ti. Junto a ti está a luz, tu não esqueces de mim. Junto a ti, o auxílio; junto a ti, a paciência. Não compreendo os seus caminhos, mas tu conheces o caminho para mim».
As cartas e notas escritas por ele naqueles anos se conservam em sua maioria. Em parte haviam sido retiradas escondidas da prisão, com ajuda de guardas de confiança. Eberhard Bethge, amigo e discípulo de Bonhoeffer nos dias de Finkenwalde, publicou mais tarde muitos destes escritos em um volume intitulado «Resistência e submissão».
Nas cartas dirigidas ao próprio Bethge há esboços de uma teologia totalmente nova. Bonhoeffer fala de ser cristão em um mundo ateu e indiferente, e de uma igreja que só será igreja quando solidarizar com todos os homens. A igreja é sempre Cristo sob a forma de comunidade, escondido entre os seres humanos, existindo «para outros».
Em um mundo onde percebe que Deus já não é reconhecido, ele levanta a seguinte pergunta: Como falar do cristianismo à margem de toda linguagem religiosa? Como falar de Deus sem religião? Como falaremos de Cristo hoje?
Em sua carta de 5 de maio de 1944 esboça uma resposta: tem que falar de Deus «na mundanidade» (weltlich: na realidade deste mundo), tal como o Antigo Testamento fala de Deus, ou seja, na finitude e nas paixões humanas, no limite e na realidade das coisas, como o que faz que o mundo seja mundo, enquanto que o ‘a priori’ metafísico impõe ao mundo falar de Deus como fosse além dos limites». E acrescenta: «Neste momento, a minha reflexão se centra em como poder renovar ‘laicamente’ –no sentido do Antigo Testamento e de João 1:14– a interpretação de conceitos como arrependimento, fé, justificação, novo nascimento, santificação».
Segundo Bonhoeffer, a dependência da religião organizada tinha minado a fé autêntica. Solicitava um novo cristianismo sem religião, livre do individualismo e o sobrenaturalismo metafísico. Deus, argumentava ele, deve ser conhecido neste mundo enquanto opera e interage com o homem na vida cotidiana. O Deus abstrato da especulação filosófica e teológica é inútil para o homem pro médio da rua, e este forma parte da maioria dos que precisam escutar o evangelho.
Durante a sua prisão, Bonhoeffer encontra pessoas que, sem invocar a Deus, permanecem profundamente humanas até o fim. É neste contexto que ele prolonga o seu questionamento teológico: «Como pode Cristo chegar a ser também Senhor dos não-religiosos?».
Bonhoeffer recorda que o cristianismo não é uma religião, e para demonstrá-lo menciona três argumentos: A religião, diz, aponta para um ‘mais além do mundo’ para fugir da realidade deste mundo, apoiando-se sobre o pressuposto da interioridade ou «alma», conduz ao individualismo e a auto-satisfação pelas próprias obras, e porque se reserva um âmbito separado do profano: o sagrado. Por isso, «o cristão não é um homo religiosus, mas simplesmente um homem, como Jesus era um homem por contraposição a João Batista». «Veio João Batista, que nem comia pão nem bebia vinho, e dizeis: Está endemoniado. Veio o Filho do homem que come e bebe, e dizeis: Olhai que comilão e beberão, amigo de publicanos e pecadores» (Luc. 7:33-34), ou seja, dos «não-religiosos».
Para Bonhoeffer, Cristo não é um homem do sagrado, mas um homo humanus: um humano que vive o humano com cada ser humano, revelando assim a profundidade de graça no próprio interior do humano. Para ele, se Deus tiver assumido plenamente a nossa humanidade em seu Filho, é bom para o homem ser homem, chegar a sê-lo e seguir sendo-o, para ser, seguindo as pisadas de Cristo, um homem com e para outros.
O cristianismo não está reservado para uma elite piedosa que cresce ao lado do sagrado, senão o cristão segue a Cristo convertendo-se radicalmente em homem, e não com as práticas religiosas. Neste sentido, «Cristo pode chegar a ser também Senhor dos não-religiosos».
Na mesma carta escreve: «Sigo aprendendo que é vivendo plenamente a vida terrestre que alguém chega a crer. Quando se renuncia completamente para chegar a ser alguém –um santo, um pecador convertido ou um homem de Igreja– (...), a fim de viver na multidão de tarefas, de questões (...), de experiências e de perplexidades(...), então este se põe totalmente nas mãos de Deus, toma a sério, não seus próprios sofrimentos, mas os de Deus no mundo, onde vigia com Cristo no Getsemani (...); é assim que alguém chega a ser um ser humano, um cristão».
As esperanças que Bonhoeffer, sua família e seus amigos, tinham em um golpe de estado na Alemanha, se acabariam em 20 de julho de 1944. Schenk von Stauffenberg e doze conspiradores mais são fuzilados naquela mesma tarde, e o general von Beck se obriga a suicidar-se. Outros colaboradores são condenados pelo Tribunal do Povo de Roland Freisler, e executados em Plötzensee. Entre eles se encontra também o comandante da cidade de Berlim, Paul von Hase, tio de Bonhoeffer. Seu irmão Klaus Bonhoeffer e seu cunhado Rüdiger Schleicher são detidos e fuzilados pouco antes de terminar a guerra.
Últimos dias
Quem sou eu?
–perguntam-me freqüentemente–,
que saio da minha cela,
sereno, risonho e firme,
como um nobre em seu palácio.
Quem sou eu?
–perguntam-me freqüentemente–,
que falo com os carcereiros,
livre, amistosa e francamente,
como se eu mandasse.
Quem sou eu? –perguntam-me também–
que suporto os dias de infortúnio
com indiferença, sorriso e orgulho,
como alguém acostumado a vencer.
Sou realmente o que outros dizem de mim?
Ou só sou o que eu mesmo sei de mim?
Intranqüilo, ansioso, doente,
qual passarinho enjaulado,
lutando para poder respirar,
como se alguém me apertasse a garganta,
faminto de aromas, de flores,
de cantos de aves,
sedento de boas palavras
e da proximidade humana,
tremendo de cólera diante da arbitrariedade
e na menor ofensa,
agitado pela espera de grandes coisas,
impotente e temeroso pelos amigos
na infinita lonjura,
cansado e vazio para orar, pensar e criar,
esgotado e disposto a me despedir de tudo.
Quem sou eu ? Este ou aquele?
Serei hoje este, amanhã outro?
Serei os dois de uma vez?
Diante dos homens, um hipócrita,
e diante de mim mesmo, um desprezível
e queixoso magricela?
Ou, o que ainda fica em mim
assemelha-se ao exército batido
que se retira desordenado
diante da vitória que acreditava segura?
Quem sou eu?
As perguntas solitárias zombam de mim.
Seja quem for, tu me conheces,
sou teu, Oh, Deus!
A situação do próprio Bonhoeffer piora de repente. No transcurso das investigações subseqüentes, a Gestapo encontra expedientes que provam inequivocamente que o grupo em torno de Canaris tinha participado da conspiração. Este «achado de expedientes de Zossen» inclui graves provas contra todo o Departamento de Defesa, incluindo a Bonhoeffer.
Antes da sua detenção, Bonhoeffer tinha se comprometido com Maria von Wedemayer, filha de um latifundiário de Pomerania. A relação com esta garota, 18 anos mais jovem que ele, apesar das difíceis circunstâncias, é um grande apoio para Bonhoeffer. Graças a ela, consegue superar a sua primeira fase de depressão na prisão, recuperando a esperança e as vontades de lutar. Durante dois anos, a sua relação se reduz ao intercâmbio por cartas e a breves visitas na prisão. Maria é a única pessoa, além dos seus próprios pais, que tem permissão para lhe escrever e visitá-lo. A correspondência entre Dietrich e Maria, publicada sob o título de «Cartas de amor da Cela 92», documenta esta relação única.
Em 8 de outubro de 1944, Bonhoeffer é levado aos temidos calabouços do escritório principal de segurança da Gestapo, para submeter-lhe a novos interrogatórios. Até então ele dispunha de livros e da possibilidade de escrever. Agora cessam as cartas e são cortados os contatos com o mundo exterior. Ele sabe que vai morrer. Em 7 de fevereiro de 1945 é deslocado para o campo de concentração de Buchenwald.
Um oficial da prisão se expressa assim dele: «Bonhoeffer era todo humildade e serenidade. Sempre irradiava uma atmosfera de bondade, de gozo, a propósito dos menores acontecimentos da vida, assim como de profunda gratidão pelo simples fato de estar com vida (...). Foi um dos estranhos seres humanos que encontrei para o qual Deus era uma realidade, e sempre próxima».
Em 5 de abril de 1945, Hitler decide executar a todos os conspiradores em torno de Canaris, para que nenhum deles tenha a oportunidade de conhecer a derrota do Reich.
Hans von Dohnanyi é executado em 8 ou 9 de abril de 1945, em Sachsenhausen. Nessa mesma noite, Bonhoeffer é deslocado para Flossenbürg. Na madrugada de 9 de abril de 1945, ele, junto com o almirante Canaris, o coronel Oster e a outros membros da resistência, é enforcado, apenas três semanas antes da captura soviética de Berlim e um mês antes da rendição da Alemanha nazista.
Como outras mortes associadas com o complô de 20 de julho, a execução foi brutal. Bonhoeffer foi despojado de sua roupa, torturado e ridicularizado pelos guardas, e levado nu ao patíbulo. A falta de forcas suficientes para pendurar os conspiradores fez que Hitler e Goebbels ordenassem usar ganchos de ferro de matadouro para levantar a vítima devagar por um laço formado de cordas de piano. Pensa-se que a asfixia demorava uma meia hora.
O médico do campo a que Bonhoeffer foi conduzido para ser executado, relata assim a sua morte: «Vi o pastor Bonhoeffer de joelhos diante do seu Deus em intensa súplica. A maneira perfeitamente total e segura de ser escutado, com a que este homem extraordinariamente simpático orava, comoveu-me profundamente. No lugar da execução ainda orou, em seguida subiu ao cadafalso. A morte aconteceu em poucos segundos. Durante os cinqüenta anos que tenho de prática médica nunca vi um ser humano morrer tão totalmente abandonado nas mãos de Deus». Tinha 39 anos de idade.
Com a rendição da Alemanha, todas as comunicações ficaram interrompidas durante meses. Maria, a noiva de Bonhoeffer, recebeu a notícia em junho na Alemanha Ocidental. Os pais, em Berlim, receberam-na apenas no final de julho. O pai morreu em 1948, e a mãe, em 1951.
A árvore da qual penduraram a Bonhoeffer leva hoje uma placa com esta inscrição: «Dietrich Bonhoeffer, testemunha de Jesus Cristo entre seus irmãos».
«Não há outro caminho
para a liberdade
que o autocontrole,
e para atuar,
que tomar uma decisão
e entrar totalmente
na tempestade da vida.
Para o sofrimento,
entregar o que sabemos direto
para uma mão mais forte que a nossa.
A morte é depois de tudo
essa festa mais jubilosa que outras
no caminho para a liberdade».
(Dietrich Bonhoeffer).
Fonte: Revista Águas Vivas
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